Os preços dos alimentos e a segurança alimentar e nutricional: uma ameaça permanente.

Eduardo Nilson, Denise Oliveira e Silva, Erica Ell, Juliana Ubarana

 

Resumo

Nesse informe, discutiremos os efeitos dos preços dos alimentos sobre a segurança alimentar e nutricional, considerando como influenciam a dupla carga da má nutrição, principalmente nas populações mais vulnerabilizadas e nos países de médios e baixos rendimentos, bem como o papel dos governos e organismos internacionais diante desse desafio.

 

A atual crise global de alimentos e nutrição é possivelmente a maior da história humana moderna e tem grandes impactos sobre a segurança alimentar e nutricional (SAN), tendo em vista que temos a dupla carga da má nutrição presente em muitos países, reunindo os efeitos da continuidade da desnutrição e do crescimento da obesidade. Naturalmente esses problemas têm uma múltipla determinação social, mas discutiremos neste informe os efeitos dos preços dos alimentos sobre a SAN na perspectiva dessa dupla carga, exigindo monitoramento e políticas contínuas por governos nacionais e apoio permanentes dos organismos internacionais para reduzir e evitar suas consequências. 

A relação entre os preços dos alimentos e a SAN é intuitiva, visto que os preços são fatores relevantes para as escolhas alimentares e esse efeito é maior nos grupos e menor renda, em que os gastos com alimentos representam a maior parte de seus orçamentos reduzidos. Dessa forma, em um primeiro nível de insegurança alimentar e nutricional, há um comprometimento da qualidade dos alimentos adquiridos e consumidos e, com o aumento da gravidade dessa insegurança, a quantidade é comprometida, chegando, nos casos extremos, à fome.

Consequências da dupla carga da má nutrição

Análises das consequências da globalização econômica do comércio de alimentos têm comprovado que seus impactos variam conforme o rendimento familiar e a renda dos países. Por exemplo, há maior risco da dupla carga da má nutrição nas famílias mais pobres dos países de menor renda e esse efeito se atenua com o aumento da renda familiar e nacional. Enquanto isso, a globalização social tem efeitos ainda maiores, visto que aumenta a probabilidade da dupla carga da má nutrição em todos os grupos de rendimentos familiares, particularmente nos países de baixa e média renda (Seferidi et al., 2022).

Considerando a dupla carga da má nutrição, por um lado, com o aumento da fome, particularmente nos últimos anos em que se somam efeitos de crises econômicas, conflitos e da pandemia de Covid-19, mais que dobrou o número de pessoas que enfrentam insegurança alimentar e nutricional aguda em todo o mundo. Em termos absolutos, antes da pandemia de Covid-19 estimava-se que a fome afetava em torno de 149 milhões de pessoas e, depois dela, em 2023, esse número passou a ser de 333 milhões de pessoas. Como resultado, há grande risco de não serem alcançadas as metas de eliminação da fome no mundo para 2030, bem como outros Objetivos de Desenvolvimento Sustentável relacionados à alimentação (FAO, IFAD, UNICEF, WFP, 2023). 

Como a continuidade na escala de insegurança alimentar e nutricional, o relatório sobre o Estado da Insegurança Alimentar da FAO (SOFI – State of Food Security and Nutrition in the World) traz o problema da fome do mundo junto com uma questão ainda maior, que é o acesso a alimentos saudáveis (FAO, IFAD, UNICEF, WFP, 2023). Esse ponto é igualmente importante, na medida em que a segurança alimentar e nutricional preconiza não somente o acesso a alimentos, mas que esses alimentos precisam ser saudáveis, cultural e socialmente adequados.

Essas situações são também associadas às mudanças climáticas, particularmente os extremos climáticos e meteorológicos no aquecimento global, seca, inundações e precipitação. Esses fenômenos extremos têm causado cada vez mais problemas à produção agrícola, repercutindo inclusive no aumento do preço dos alimentos básicos, levando à insegurança alimentar e desnutrição generalizadas e persistentes para milhões de pessoas (Mirzabaev et al., 2023).

Essa insegurança alimentar grave tem sérios impactos sobre a saúde, tanto imediata quanto futura. Por exemplo, segundo o Estudo de Carga Global da Doença (GBD – Global Burden of Disease), em 2019, foram perdidos 68 milhões de anos ajustados por incapacidade devido à desnutrição, correspondendo, ainda, 252 mil mortes globalmente (Chong et al., 2023)(IHME, 2020). Além disso, consequências dessa insegurança grave, tais como a desnutrição crônica entre crianças, trazem comprometimento no desenvolvimento e na cognição, que afetam o desenvolvimento humano até a vida adulta (Soliman et al., 2021).

Em paralelo, segundo o Atlas Mundial da Obesidade 2024 (World Obesity Federation, 2024), alerta que, mantida a atual tendência de crescimento, teremos 79% dos adultos de países de renda baixa e média com excesso de peso (sobrepeso mais obesidade) até 2035 e, tão ou mais preocupantemente, até esse ano serão até 88% das crianças com excesso de peso nesses países. Em termos absolutos, isso significa que o número de adultos com obesidade pode aumentar dos 0,81 milhão em 2020 para cerca de 1,53 milhão em 2035.

Em consequência, mais de 12% das mortes anuais atribuídas às DCNTs são associadas ao excesso de peso, contemplando principalmente doenças cardiovasculares, diabetes e cânceres. Essa carga reúne os impactos das mortes prematuras e da morbidade associada ao excesso de peso e à obesidade, totalizando, anualmente, mais de 120 milhões de anos-pessoa perdidos. Vale destacar, que, apesar desse impacto global da obesidade, os seus efeitos são mais acentuados nos países de média renda, em que acontecem três quartos dessas mortes e doenças evitáveis em adultos relacionadas ao IMC elevado. 

Os preços dos alimentos e a fome

Segundo Headley e Ruel, a inflação de alimentos tem um forte impacto sobre a desnutrição infantil em países de baixa e média renda tendo em vista a crescente volatilidade de nos preços dos alimentos no século XXI, com picos de preços globais em 2007-2008, 2010-2011 e novamente em 2021-22, que pode ser estimado (Headey e Ruel, 2023). Os preços internacionais dos alimentos tornaram-se cada vez mais voláteis nas últimas décadas, e a inflação alimentar pode muito bem ser um dos principais desafios econômicos deste século, especialmente com a mudança climática e os choques de conflitos. 

Em seu estudo, buscaram compreender melhor o impacto da inflação alimentar no risco de desnutrição infantil analisando dados de inflação alimentar e déficits de peso e de estatura em 1,27 milhão de crianças em idade pré-escolar de 44 países em desenvolvimento. Os resultados são impressionantes, mostrando que aumentos no preço real dos alimentos aumentam significativamente o risco de perda de peso em 9 por cento e de emaciação grave em 14 por cento. Esses riscos se aplicam mesmo a bebês recém-nascidos, sugerindo a influência pré-natal da falta de alimentos, bem como a crianças mais velhas que comumente mostram uma deterioração na qualidade da dieta em situações de inflação alimentar. Além disso, crianças de famílias pobres e rurais sem terra são as mais severamente impactadas. 

Voltando à questão do pré-natal, o estudo também aponta que a inflação alimentar durante a gravidez e no primeiro ano após o nascimento também aumenta o risco de estatura reduzida para crianças de 2 a 5 anos de idade, cujas consequências são observadas ao longo de toda a vida da criança, incluindo maior suscetibilidade a doenças, maior risco de obesidade, atraso no desenvolvimento cognitivo e pior rendimento escolar. Essas evidências fornecem, portanto, uma forte justificativa para intervenções destinadas a prevenir a inflação alimentar e mitigar seus impactos em crianças vulneráveis e suas mães.

Em outro trabalho dos mesmos autores, são ainda mais detalhados os efeitos da inflação de alimentos sobre a desnutrição infantil, destacando a importância de iniciativas o importante papel de organismos internacionais como a FAO no monitoramento global de preços dos alimentos (Headey e Ruel, 2024). Por exemplo, segundo o índice de preços de alimentos da FAO, os preços alcançaram um pico histórico em março de 2022, que representa um valor 116% maior do que aquele do ano 2000.

Os impactos da inflação de alimentos se dão de forma diferenciada em populações urbanas e rurais. Na zona rural, por exemplo, essa inflação, no curto prazo, afeta diretamente a renda familiar e esse impacto pode ser maior ou menor dependendo do quanto o que ela produz é para seu consumo.

Na Figura 1, há um detalhamento do impacto do aumento de preço de alimentos nas prevalências de emaciação (comprometimento do índice de peso para altura), segundo grupos de idade. Nesse gráfico, foi estimado o impacto de um aumento de 5% no preço dos alimentos por um período de três meses, mostrando que pode haver aumento de até 17% na prevalência de emaciação grave e que todos os grupos estão expostos a esse risco, mesmo os menores de um ano, tendo em vista possíveis impactos ainda na gestação durante episódios de inflação alimentar. 

Figura 2: Coeficientes representando mudanças no risco de emaciação em consequência de aumentos de 5% no preço dos alimentos por 3 meses, segundo idade da criança.

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Descrição gerada automaticamente

Vale destacar que os efeitos dos preços dos alimentos variam também, tais como sexo (meninos são mais suscetíveis do que meninas, mesmo durante a gestação), assim como fatores associados. Conforme mostrado na Figura 2, o mesmo aumento de preços analisado anteriormente, com base nessas novas desagregações, revela que o risco de emaciação aumenta em 11% entre os meninos (comparado a um aumento de 6% entre as meninas), que o risco aumenta em 10% para crianças que residem na zona rural (2,5 vezes mais do que na urbana), aumenta em 15% para as famílias em situação de pobreza (2,5 vezes mais do que as não pobres), além de também aumentar em 16% entre crianças de famílias sem a posse de terras. Se unidos dois desses fatores de vulnerabilidade (pobreza e falta de acesso a terras), o risco de emaciação chega a um pico de 26%.

Figura 2: Os impactos heterogêneos do aumento de 5% no preço dos alimentos por 3 meses no risco de emaciação de crianças segundo gênero, localização, pobreza e posse de terras.

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Descrição gerada automaticamente

Vale destacar que mesmo comprometimentos nutricionais breves nos primeiros 1000 dias de vida (desde a concepção até os dois anos de idade) podem afetar o crescimento de uma criança por anos no futuro e até determinar a estatura adulta. Por isso, os autores também analisaram os impactos da inflação alimentar no período pré-natal ou nos primeiros ou segundos anos após o nascimento constituem fatores de risco a longo prazo para a redução da estatura das crianças. Como resultado, observou-se que um aumento de 5% nos preços dos alimentos no período pré-natal aumenta o risco subsequente de redução da estatura em 1,6% e aumenta o risco de déficit de estatura para idade (desnutrição crônica) em 2,4%, consistente com choques nos preços dos alimentos aumentando o risco de emagrecimento entre recém-nascidos e lactentes. Além disso, foram encontrados efeitos significativos de choques nos preços dos alimentos no primeiro ano após o nascimento, consistentes com a conhecida vulnerabilidade nutricional dos lactentes.

Os autores então analisaram outro componente importante do problema da inflação dos alimentos sobre a nutrição infantil: a qualidade da dieta. Para testar isso, investigaram se os preços dos alimentos preveem mudanças na obtenção de diversidade dietética adequada, definida como uma criança consumindo pelo menos quatro dos sete grupos alimentares saudáveis nas últimas 24 horas. Esse indicador simples tem se mostrado eficiente para prever a adequação do consumo de calorias, vitaminas e minerais das crianças, e, no estudo, mostrou-se que a diversidade dietética também é preditiva de riscos reduzidos de emagrecimento e estatura reduzida: um aumento de 5% nos preços reais dos alimentos nos últimos 12 meses prevê uma redução de 3% na probabilidade de uma criança ter uma dieta adequadamente diversificada.

Isso não é surpreendente do ponto de vista econômico, porque à medida que os preços dos alimentos aumentam e a renda disponível diminui, as pessoas recorrem a fontes mais baratas de calorias, ou seja, alimentos ricos em amido e produtos ultraprocessados. Infelizmente, alimentos nutritivos como frutas, vegetais e alimentos de origem animal podem ser entre 5 e 15 vezes mais caros do que calorias provenientes de alimentos ricos em amido como arroz, trigo ou milho em países de baixa e média renda, tornando os alimentos ricos em nutrientes economicamente ainda menos atrativos para os pobres durante uma crise. 

Ao mesmo tempo, comparativamente aos alimentos in natura e minimamente processados, tem havido uma tendência de redução relativa no preço dos produtos alimentícios ultraprocessados, favorecendo ainda mais o deslocamento do consumo principalmente das famílias de menor renda. Por exemplo, no Brasil, se mantidas as atuais tendências em relação aos preços dos alimentos, os ultraprocessados estarão mais baratos do que os alimentos saudáveis em 2026 (Maia et al., 2020).

Na discussão do trabalho, os autores alertam que a proteção de crianças vulneráveis contra a volatilidade dos preços dos alimentos tornou-se nosso “novo normal”. Pela primeira vez, a comunidade científica possui evidências sólidas de diferentes países de que o estado nutricional de crianças mais jovens é altamente vulnerável a choques nos preços dos alimentos, que se tornaram mais frequentes e severos no século XXI. Uma vez que esses choques têm efeitos prejudiciais durante a gravidez, bem como na primeira infância, transferências de renda e doação de alimentos nutritivos para mães e crianças podem ser meios eficazes de prevenir a desnutrição e a mortalidade relacionada ao longo dos primeiros 1000 dias, especialmente se combinados com estratégias de educação alimentar e nutricional. Em uma era de maior volatilidade dos preços dos alimentos e eventos climáticos extremos mais frequentes, há uma necessidade urgente de maior investimento no monitoramento da nutrição, segurança alimentar e bem-estar econômico em alta frequência e tempo real. Além disso, e não menos importante, os programas de prevenção e tratamento da desnutrição grave também precisam ser fortalecidos e equipados para manter plena operação durante períodos de crise.

Como recomendações dos autores, os sistemas alimentares nos níveis local, nacional, regional e global requerem ações para tornar esses sistemas mais produtivos e sustentáveis, mais equitativos e inclusivos, e mais resilientes aos complexos choques econômicos, políticos e ambientais que estão impactando os sistemas alimentares com crescente regularidade e gravidade.

Preços dos alimentos e obesidade

É importante destacar que, na formulação de políticas públicas para a prevenção de doenças relacionadas à alimentação, os fatores ambientais que influenciam as escolhas alimentares são mais fortes, acima da responsabilidade pessoal. Nesse sentido, as imperfeições de mercado no varejo de alimentos que distorcem os preços são um elemento importante do ambiente alimentar. Em um estudo recente nos Estados Unidos, por exemplo, a partir de um conjunto de dados abrangente sobre quantidades e preços de compras de alimentos, revelou-se que as distorções de preço representam um terço da diferença entre a ingestão recomendada e real de frutas e vegetais, portanto políticas fiscais para corrigir essas distorções beneficiariam todos os consumidores.(Pancrazi, Rens, van e Vukotić, 2022).

Em outro estudo foram analisados os potenciais impactos da crise do custo de vida, com o aumento dos custos de alimentos e da energia, sobre a epidemia de obesidade no Reino Unido, produzindo mais desigualdades dietéticas e de saúde para aqueles que vivem com obesidade (Johnstone e Lonnie, 2023). Mesmo em países de alta renda, a qualidade da dieta e o estado de saúde estão fortemente correlacionados com o status socioeconômico e a insegurança alimentar e nutricional, ao considerar “a falta de acesso seguro a quantidades suficientes de alimentos seguros e nutritivos para o crescimento e desenvolvimento normais e uma vida ativa e saudável”, mostra que essa insegurança pode ser experimentada sem a fome. Por exemplo, para indivíduos que vivem com obesidade, o aumento do custo de alimentos mais saudáveis aumenta a sua insegurança alimentar e nutricional, não relacionada ao acesso aos alimentos como um todo, mas ao acesso a alimentos mais saudáveis. A isso se somam as características do sistema alimentar hegemônicos globalmente, dominado por alimentos ultraprocessados, com alta densidade energética, gordura, açúcar e sal, que são frequentemente mais baratos do que alimentos mais nutritivos. No Reino Unido, os alimentos mais saudáveis são três vezes mais caros por caloria do que os alimentos não saudáveis, com uma tendência semelhante observada nos Estados Unidos. 

Fontes alimentares de proteínas, fibras, vitaminas e minerais custam mais por 100 g, após o ajuste para energia. Como resultado, as escolhas dietéticas das famílias de menor renda geralmente são limitadas a uma combinação de baixo preço e alta energia, o que, em longo prazo, pode promover o ganho de peso, especialmente quando combinado com um estilo de vida sedentário. Assim, apesar de parecer um paradoxo, a realidade é que a insegurança alimentar e nutricional está diretamente relacionada à prevalência crescente de obesidade – uma ligação que pode parecer contraditória para o público em geral. Nesse contexto, ainda se somam o preconceito social e a discriminação experimentada por pessoas que vivem com obesidade e insegurança alimentar, com respostas ortodoxas de “comer menos” e “se exercitar mais” sem enfrentar os problemas conjunturais que levaram à e sustentam essa situação.

No Brasil, por exemplo, estimou-se que o preço dos ultraprocessados é inversamente proporcional às prevalências de excesso de peso e de obesidade, principalmente nos estratos de menor renda, ou seja, quanto menor seu preço, maior as prevalências (Passos et al., 2020).

Em resposta ao aumento das taxas de obesidade em todos os países, devido, em parte, ao consumo de alimentos não saudáveis (particularmente de ultraprocessados), pesquisadores e formuladores de políticas argumentaram que a imposição de impostos sobre alimentos que promovem a obesidade, talvez combinada com subsídios para opções mais saudáveis, seria uma ferramenta eficaz para conter a epidemia de obesidade. As evidências atuais indicam, entretanto, que, além dos impostos e subsídios alimentares direcionados, será necessário um conjunto de políticas para reduzir a incidência de obesidade (Finkelstein et al., 2014).

Isso é corroborado e recomendado por posições técnicas do Banco Mundial, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), bem como de diversos grupos de especialistas, apontando a necessidade de estratégias conjuntas de políticas tributárias e regulatórias, como taxação de alimentos e bebidas não-saudáveis, regulação da venda de alimentos em ambientes institucionais (como escolas), regulação da publicidade de alimentos e aprimoramento da rotulagem nutricional, entre outras (The World Bank, 2017)(OECD, 2017)(Dobbs et al., 2014). Portanto, a questão do preço dos alimentos é um componente essencial a ser abordado nas políticas tributárias, com o objetivo de tornar escolhas alimentares mais saudáveis mais fáceis e de desincentivar o consumo de produtos não saudáveis, como os ultraprocessados.

Lições e oportunidades no Brasil

O Brasil vive um momento rico e oportuno para as políticas que lidam com os preços dos alimentos e suas consequências sobre a segurança alimentar e nutricional. Primeiramente, no contexto das políticas de proteção social aliadas à promoção da produção de alimentos saudáveis, temos a ampliação das transferências de renda junto com a retomada do apoio à agricultura familiar, no estímulo à produção orgânica e agroecológica, no fortalecimento dos estoques públicos de alimentos (que controlam os preços em momentos como a entressafra) e na expansão das compras públicas desses alimentos locais (como pela alimentação escolar) e equipamentos sociais (feiras, mercados, bancos de alimentos, restaurantes populares, cozinhas comunitárias etc.). 

Mais recentemente, a publicação do Decreto Presidencial sobre a cesta básica de alimentos no âmbito da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e da Política Nacional de Abastecimento no início de março de 2024 (Governo do Brasil, 2024) foi uma outra grande conquista, segundo o qual a cesta básica só poderá conter alimentos in natura e minimamente processados, além de ingredientes culinários e alguns alimentos processados, sendo excluídos por completo os produtos ultraprocessados. Dentre as repercussões esperadas deste decreto, particularmente em relação aos preços dos alimentos, espera-se um impacto na discussão da reforma tributária, visto que os produtos da cesta não serão sujeitos a impostos, ampliando a progressividade das políticas públicas e reduzindo o impacto das desigualdades de renda na qualidade da alimentação. Ao mesmo tempo, como instrumento para políticas sociais, o decreto impactará diretamente sobre as doações de alimentos a famílias em situação de vulnerabilidade, pois quem tem fome tem pressa e também tem direito a uma alimentação adequada e saudável.

Enquanto isso, espera-se avanços na possível tributação seletiva de ultraprocessados devido a seu impacto negativo sobre a saúde humana e sobre o ambiente (juntamente com o tabaco, o álcool e possivelmente os agrotóxicos). Muitos países já adotam impostos sobre categorias específicas de produtos ultraprocessados, como bebidas adoçadas, mas se sabe que o impacto maior de uma intervenção como essa será alcançado com uma abordagem de todos os ultraprocessados ou, no mínimo, sobre aqueles que são mais consumidos pela população. Ao mesmo tempo, apesar de improvável, seria fundamental também a retirada de subsídios para a fabricação de ultraprocessados que estão associados às atividades na Zona Franca de Manaus, que tornam os preços de produtos como os refrigerantes ainda mais baratos. 

No Brasil, um estudo estimou, que, para cada aumento em 1% no preço dos ultraprocessados, poderia haver uma redução de 0,33% na prevalência de excesso de peso e de 0,59% na de obesidade no país (Passos et al., 2020). Com base nisso, outro estudo nacional estimou que a aplicação de uma alíquota de 8% ou de 50% de tributação sobre todos os alimentos e bebidas ultraprocessados preveniria 467 mil casos e 62 mil mortes ou 1 milhão de casos e 236 mil mortes, respectivamente, por doenças crônicas não-transmissíveis associadas ao excesso de peso e à obesidade (Camargo, 2023).

Além destes, os avanços recentes com a aprovação da rotulagem nutricional frontal de alimentos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), trazendo alertas sobre o excesso de sódio, gorduras saturadas e de açúcares adicionados, é outra política importante, ainda que não aborde especificamente a questão dos preços dos alimentos. Contudo, há necessidade de avaliação dessa política tendo em vista questões de design e do perfil nutricional adotado para garantir o maior impacto possível. Enquanto isso, outras políticas que não estão diretamente relacionadas ao preço dos alimentos, mas que se beneficiam da redução nos preços dos ultraprocessados e de sua ubiquidade no mercado de alimentos, como a regulação de cantinas escolares e da publicidade de alimentos carecem de legislação nacional. 

Essa conjunção de políticas intersetoriais pode ter um triplo impacto pensando-se no enfrentamento da sindemia de desnutrição, da obesidade e das mudanças climáticas ao abordar os determinantes sociais da dupla carga da má nutrição e atuarem na transformação dos sistemas alimentares (Swinburn et al., 2019). Inclusive, em se tratando dos sistemas alimentares, a monotonia em que se baseiam os modelos hegemônicos na atualidade, globalizados e limitados a poucas culturas (como soja, milho, trigo e arroz), tratadas como commodities, comprometem a biodiversidade do planeta e levam a uma imensa fragilidade e perda de resiliência, de modo que crises e conflitos locais podem se tornar problemas globais e comprometer a segurança alimentar e nutricional de muitos países e agravando a dupla carga da má nutrição.

Portanto, mesmo com as dificuldades certas no âmbito do legislativo, será fundamental o enfrentamento dos interesses comerciais dos lobbies para atuar em favor dos direitos à saúde e à alimentação dos brasileiros, reduzindo desigualdades e promovendo a produção e consumo de alimentos saudáveis. 

Conclusão

Os preços dos alimentos possuem relação direta com a dupla carga da má nutrição, representando o conjunto de repercussões da insegurança alimentar e nutricional a partir do comprometimento da qualidade dos alimentos em um primeiro momento até a falta de acesso a alimentos em geral, nas situações de maior vulnerabilidade. Ainda, os efeitos dos preços dos alimentos sobre a segurança alimentar são muito desiguais e injustos, afetando mais fortemente aos mais vulnerabilizados, como a população de baixa renda, crianças, mulheres, população rural, população negra e povos e comunidades tradicionais.

O enfrentamento desse problema exige políticas estruturantes, baseadas em direitos, como transferências de renda e políticas de estímulo à produção de alimentos locais e diversos e de estoques públicos de alimentos, além de políticas que garantam e ampliem o acesso a alimentos saudáveis e desestimulem os não-saudáveis, e o monitoramento dos preços em nível nacional e global para minimizar o efeito dos preços sobre a insegurança alimentar e nutricional, representada em sua completude, com a fome/desnutrição e a obesidade. No contexto global, vale destaque à atuação da FAO nesse monitoramento, que calcula mensalmente um índice geral de preços de alimentos e, também, índices específicos para grupos de alimentos de interesse ao comércio mundial, como cereais, óleos vegetais, laticínios, carnes e açúcar, apoiando a emissão e alertas e medidas de mitigação de seus impactos, devendo ser acompanhado de monitoramentos nacionais e regionais para reforçar essa capacidade de identificação de situações de risco e promover respostas a elas.

A partir dessas políticas estruturantes e baseadas em direitos e com dados desse monitoramento, pode-se mitigar ou mesmo evitar impactos dos preços dos alimentos sobre a segurança alimentar e nutricional. No contexto do Dia Mundial da Saúde de 2024, que teve como lema “Minha Saúde, Meu Direito”, isso fica mais premente, trazendo juntos os direitos à saúde e à alimentação para o alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, não deixando ninguém para trás.

Referências

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