Perdas e desperdícios de alimentos: um problema pouco trabalhado nos sistemas alimentares.
Eduardo Nilson, Denise Oliveira e Silva, Erica Ell, Juliana Ubarana
Resumo
Nesse informe, discutiremos as perdas e desperdícios de alimentos e seus impactos sobre a segurança alimentar e nutricional, as economias e as mudanças climáticas, bem como possíveis caminhos para sua redução, a partir do Relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) sobre Perdas e Desperdícios de Alimentos 2024. A partir desse referencial internacional, descreveremos a situação brasileira e as iniciativas nacionais para o enfrentamento desse problema.
Quando abordamos a atual crise global de alimentos e nutrição e destacamos seus impactos sobre a segurança alimentar e nutricional (SAN), considerando a sindemia global de desnutrição, obesidade e mudanças climáticas, as perdas e desperdícios de alimentos são um tema normalmente pouco abordado, mas fundamental na agenda de transformação dos sistemas alimentares globais.
Apesar de serem comumente tratados em conjunto, perdas e desperdícios são questões semelhantes, mas analisadas em contextos distintos. Primeiramente, as perdas de alimentos (do inglês “food loss”), está relacionado à perda tanto no campo (de produção) até distribuição, até a chegada ao atacado. Por exemplo, no caso das cadeias produtivas de commodities, refere-se aos alimentos não reaproveitados em momento algum desse caminho, seja para consumo humano, seja animal. Enquanto isso, desperdícios de alimentos (“food waste”, em inglês), representam é tudo o que foi removido e descartado da cadeia de produção, distribuição, venda e consumo de comida, ou seja, está diretamente relacionado ao desperdício do alimento processado ou natural, seja no varejo, seja no consumo doméstico.
Desde quando as primeiras comunidades humanas se fixaram em determinados territórios, um ponto crucial de seu sucesso, principalmente à medida em que populações cresciam, foi a preservação e conservação dos alimentos. Disso nasceram tecnologias como a secagem, o uso de sal e, depois, tecnologias mais e mais complexas, desde a pasteurização e o uso de baixas temperaturas e vácuo até o uso de aditivos alimentares, com o advento dos produtos ultraprocessados. Assim, ao mesmo tempo, um grupo de soluções oferecidas envolve o processamento industrial benéfico dos alimentos minimamente processados e processados, como queijos, conservas e alimentos preservados por congelamento e vácuo, entre outros, utilizando novas tecnologias de conservação e embalagem, os riscos associados aos ultraprocessados cresceram
Nesse mesmo contexto, com o crescimento da especialização de atividades nos sistemas alimentares e o do comércio vieram desafios adicionais e aumentos nas perdas e desperdícios ao longo de toda a cadeia entre a produção e o consumo que faz parte de sistemas alimentares cada vez mais longos, inclusive globalizados.
Naturalmente, a primeira ideia que surge a partir das perdas e desperdícios é em relação ao seu impacto sobre a SAN, visto que, ao menos em parte, seriam alimentos que potencialmente poderiam alimentar muitos dos famintos no mundo. Contudo, as perdas e desperdícios acontecem ao longo dos sistemas alimentares, desde a produção até a preparação e o consumo e, trazendo consigo considerações sanitárias e logísticas, como as relacionadas às condições sanitárias dos alimentos e condições de transporte e armazenamento quando se pensa em formas de doação, distribuição ou reaproveitamento.
Além disso, as perdas e desperdícios também possuem relevantes impactos ambientais, tanto no que se refere à contaminação ambiental do lixo, ainda que degradável, quanto em relação à emissão de gases de efeito estufa
Relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) sobre Perdas e Desperdícios de Alimentos 2024
Diante dessa questão, a publicação do Relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) sobre Perdas e Desperdícios de Alimentos 2024 foi um importante marco, ao expandir análises e estimativas sobre as perdas e desperdícios de alimentos em nível global, inclusive aprimorando metodologias de mensuração e propondo alternativas para reduzir o problema e mitigar suas consequências (United Nations Environment Programme, 2024).
Na apresentação do relatório, argumenta-se que, para catalisar ação essencial rumo à redução das perdas e desperdícios de alimentos e ao alcance do ODS 12.3, é imperativo compreender a sua extensão. Portanto, a questão da medição dessas perdas de desperdícios permite aos países compreender a magnitude do problema, revelando assim o tamanho da oportunidade de intervenção, ao mesmo tempo que estabelece uma linha de base para acompanhar o progresso.
No histórico dos Relatórios globais sobre o tema, a edição e 2021 marcou um momento crucial na compreensão das perdas e desperdícios de alimentos globalmente, abrangendo os setores de varejo, serviços alimentares e domésticos e revelou uma disponibilidade maior de dados sobre desperdício de alimentos do que era esperada, especialmente no nível doméstico, e mostrou que a geração per capita dos desperdícios de alimentos domiciliar era mais consistente globalmente do que se pensava anteriormente.
Nessa sequência histórica, o relatório de 2024 baseia-se em seus antecessores de três maneiras-chave: em primeiro lugar, incorpora dados vastamente expandidos de todo o mundo, proporcionando estimativas globais e nacionais significativamente mais robustas, detalhadas no Capítulo 2 do relatório principal; em segundo lugar, expande a metodologia de medição do desperdício de alimentos do ODS 12.3 introduzida no relatório de 2021, oferecendo orientação aprimorada sobre medição nos setores de varejo, serviços alimentares e domésticos (explorando várias metodologias, suas forças e limitações, e estratégias para priorizar subsetores para medição); e, por último, o relatório passa de focar exclusivamente na medição das perdas e desperdícios de alimentos para explorar soluções para a sua redução por meio de abordagens eficazes, com destaque para parcerias público-privadas neste relatório de 2024.
Entre as mensagens chaves do Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos 2024, destacam-se:
• Em 2022, o mundo desperdiçou 1,05 bilhão de toneladas de alimentos. Isso representa perto de um quinto (19%) dos alimentos disponíveis para os consumidores sendo desperdiçados, nos níveis de varejo, serviços alimentares e domésticos. Isso se soma aos 13% dos alimentos do mundo que se estima serem perdidos na cadeia de abastecimento, conforme estimado pela FAO, desde a pós-colheita e excluindo o varejo.
• A maior parte do desperdício de alimentos do mundo vem dos lares. Do total de alimentos desperdiçados em 2022, os lares foram responsáveis por 631 milhões de toneladas, o que equivale a 60% do total, enquanto o setor de serviços alimentares representou 290 milhões de toneladas e o setor varejista, 131 milhões de toneladas de alimentos desperdiçados, ou seja, o equivalente a 28% e 12% do total, respectivamente.
• Reduzir o desperdício de alimentos traz benefícios cumulativos: as perdas e desperdícios de alimentos geram de 8 a 10 por cento das emissões globais de gases de efeito estufa (GEE) – quase cinco vezes as emissões totais do setor de aviação. Paradoxalmente, isso ocorre enquanto 783 milhões de pessoas estão com fome e um terço da humanidade enfrenta algum grau de insegurança alimentar e nutricional (INSAN).
• As habitações desperdiçam pelo menos um bilhão de refeições por dia, isto é, em média, cada pessoa desperdiça 79 kg de alimentos por ano. Essas estimativas consideram uma avaliação muito conservadora sobre a parcela de desperdício de alimentos que são comestíveis. Pensando-se no quanto isso representa em termos da INSAN global, isso equivale a 1,3 refeições todos os dias do ano para todos impactados pela fome.
• O desperdício de alimentos não é um problema unicamente dos países ricos. Após praticamente dobrar a cobertura de dados desde que o Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos de 2021 foi publicado, houve um aumento da convergência nas estimativas médias de desperdício de alimentos domésticos per capita, permitindo maior detalhamento nas análises e comparações. Nesse sentido, países de alta renda, renda média alta e renda média baixa diferem nos níveis médios observados de desperdícios de alimentos domésticos em apenas 7 kg/per capita/ano.
• A correlação entre temperatura local e o desperdício de alimentos: países mais quentes parecem ter mais desperdício de alimentos per capita em lares, potencialmente devido ao aumento do consumo de alimentos frescos com partes substancialmente não comestíveis e à falta de uma cadeia de frio robusta. Além disso, temperaturas sazonais mais altas, eventos de calor extremo e secas tornam mais desafiador armazenar, processar, transportar e vender alimentos com segurança, muitas vezes levando a volumes significativos de alimentos sendo desperdiçados ou perdidos.
• Disparidades urbano-rurais: países de renda média exibem variações entre populações urbanas e rurais, com áreas rurais geralmente desperdiçando menos. Possíveis explicações incluem uma maior destinação de restos de alimentos para animais de estimação, ração animal e compostagem caseira em áreas rurais. O relatório recomenda concentrar esforços para fortalecer a redução do desperdício de alimentos e os circuitos circulares nas cidades.
• Papel do G20 na redução dos desperdícios de alimentos: apenas quatro países do G20 (Austrália, Japão, Reino Unido e EUA) e a União Europeia têm estimativas de desperdício de alimentos adequadas para rastrear o progresso até 2030. Dois países adicionais do G20 têm estimativas domésticas adequadas (Canadá e Arábia Saudita), com a estimativa do Brasil esperada para o final de 2024. Os países do G20 podem desempenhar um papel de liderança na cooperação internacional e no desenvolvimento de políticas para cumprir o ODS 12.3, podem usar sua influência substancial nas tendências globais de consumo para promover conscientização e educação sobre desperdício de alimentos em casa, e podem compartilhar sua experiência com países que estão começando a enfrentar esse problema.
• Países como o Japão e o Reino Unido mostram que a mudança em grande escala é possível, com reduções de 18% e 31%, respectivamente. Governos nacionais e locais, cidades e empresas de alimentos de todos os tamanhos devem trabalhar em colaboração para reduzir o desperdício de alimentos e ajudar os moradores a agir.
• Parcerias público-privadas para reduzir o desperdício de alimentos e os impactos nas mudanças climáticas e no estresse hídrico estão sendo adotadas por um número crescente de governos, grupos regionais e industriais. Centradas em uma abordagem Alvo-Medida-Ação, elas reúnem partes interessadas para colaborar e alcançar um objetivo comum, superando alguns dos desafios de um sistema alimentar fragmentado e impulsionando a inovação para uma mudança holística de longo prazo.
• Os países devem utilizar o Índice de Desperdício de Alimentos para medir o desperdício de alimentos de forma consistente, desenvolver linhas de base nacionais robustas e acompanhar o progresso. Poucos países coletam dados robustos sobre desperdícios de alimentos, que são essenciais para entender a escala do problema, direcionar pontos críticos e avaliar a eficácia das intervenções. Apesar da abundância de estudos domiciliares, apenas alguns são adequados para rastrear o progresso para o ODS 12.3 em nível nacional e a cobertura de dados sobre desperdício de alimentos nos setores de varejo e serviços alimentares ainda é frágil.
• Deve-se aproveitar a oportunidade da próxima rodada de planos nacionais de clima e estratégias e planos de ação nacionais de biodiversidade (NDCs e NBSAPs), porque até 2022, apenas 21 países incluíram a redução de perdas e desperdícios de alimentos nesses planos. O processo de revisão dos NDCs para 2025 oferece uma oportunidade chave para aumentar o compromisso climático, integrando as perdas e desperdícios de alimentos. Integrar medidas abrangentes para enfrentar o desperdício de alimentos dentro das é outra oportunidade para promover o desenvolvimento sustentável, integrando este compromisso a outros da Agenda 2030.
• O desperdício de alimentos deve ser abordado tanto em nível individual quanto sistêmico, incluindo esforços direcionados em áreas urbanas e colaboração internacional entre países e ao longo das cadeias de abastecimento.
Como reforçado nas mensagens principais do relatório, o desperdício de alimentos é uma falha de mercado que resulta no descarte de mais de US$1 trilhão em alimentos a cada ano, assim como representa é uma falha ambiental, na medida em que, junto com as perdas de alimentos, gera aproximadamente 8 a 10% das emissões globais de gases de efeito estufa. Além disso, ocupa o equivalente a quase 30% das terras agrícolas do mundo, tendo em vista que a conversão de ecossistemas naturais para a agricultura tem sido a principal causa da perda de habitat no mundo. Com a mesma urgência, o desperdício de alimentos está falhando com as pessoas, pois enquanto toda essa quantidade de alimentos está sendo jogada, estima-se que até 783 milhões de pessoas são afetadas pela fome a cada ano, e 150 milhões de crianças menores de cinco anos têm seu crescimento e desenvolvimento prejudicados devido à falta crônica de nutrientes essenciais em suas dietas.
Como resposta no âmbito dos compromissos globais, o ODS 12, meta 12.3, captura um compromisso de reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita global nos níveis de varejo e consumo, e reduzir a perda de alimentos ao longo das cadeias de abastecimento até 2030. No contexto dos organismos das Nações Unidas, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) é responsável pelo monitoramento do desperdício de alimentos global nos níveis de varejo, serviços alimentares e doméstico, enquanto a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) é responsável pelo acompanhamento das perdas de alimentos ocorrendo ao longo da cadeia de abastecimento pós-colheita até o atacado (antes do nível de varejo). Além das questões específicas das perdas e desperdícios, o ODS 12.3 tem um papel fundamental no alcance de outros ODS, incluindo aqueles relacionados à Fome Zero (ODS 2), às cidades sustentáveis (ODS 11) e à ação climática (ODS 13).
No campo dos compromissos internacionais, além dos ODS, outro ponto importante é o reconhecimento da conexão entre o desperdício de alimentos e a perda de biodiversidade no Quadro Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal, que especificamente destaca a redução pela metade do desperdício de alimentos global até 2030 na meta 16 (Convention on Biological Diversity, 2022).
Em relação à disponibilidade de informações, merece destaque o aumento substancial na disponibilidade e cobertura de dados no setor doméstico, com 194 pontos de dados em 93 países, o que representa quase o dobro no número de países com algum tipo de estimativa em 2021, com um crescimento especialmente significativo na cobertura de países de baixa e média renda. A partir desse aumento, estima-se que há pelo menos alguns dados sobre desperdício doméstico de alimentos em países que representam cerca de 85% da população global, fortalecendo a confiança e robustez das estimativas de desperdício de alimentos.
Por fim, nas recomendações, foi bastante enfatizada a importância das parcerias público-privadas, tendo em vista que uma parcela significativa dos desperdícios acontece no comércio e serviços de alimentação, que exige responsabilização desses atores na agenda.
Metodologia de estimação dos desperdícios de alimentos
Apesar do teor mais técnico, é fundamental discutir brevemente a metodologia desenvolvida e aplicada para o Índice de Desperdício de Alimentos apresentada no relatório do PNUMA. Essa metodologia possui três níveis, aumentando na precisão e utilidade dos dados gerados, mas também é fruto do aumento nos recursos e informações básicas necessárias para implementar esses níveis, particularmente no relatório de 2023:
• O Nível 1 utiliza técnicas de modelagem para estimar o desperdício de alimentos e é relevante para os Estados-Membros que ainda não realizaram sua própria medição, de modo análogo ao papel exercido pele Estudo de Carga Global das Doenças (GBD – Gobal Burden of Disease) para dados epidemiológicos nacionais. O Nível 1, portanto, envolve a extrapolação de dados de outros países para estimar o desperdício de alimentos em cada setor para um determinado país. As estimativas para esses países são aproximações de sua realidade, de forma que são estimações da magnitude dos desperdícios, suficientes para fornecer insights sobre a escala do problema e para justificar ações, mas inadequadas para rastrear mudanças no desperdício de alimentos ao longo do tempo. Elas são destinadas como suporte de curto prazo enquanto os governos desenvolvem capacidade para medição nacional (consistente com o Nível 2).
• O Nível 2 é a abordagem recomendada para os países e envolve a própria medição do desperdício de alimentos. A natureza da medição variará de acordo com o setor e as circunstâncias locais. Essa abordagem deve ser realizada pelos governos nacionais ou derivada de outros estudos nacionais realizados de acordo com o framework descrito no. Assim, o Nível 2 permite gerar dados primários sobre a geração real de desperdício de alimentos e é adequado para rastrear e monitorar o desperdício de alimentos em nível nacional ao longo do tempo, de acordo com o ODS 12.3.
• Por fim, o Nível 3 fornece informações adicionais para informar políticas e outras intervenções destinadas a reduzir a geração de desperdício de alimentos. Dentre estas, estão incluídas a desagregação de dados por destino, partes comestíveis e não comestíveis dos alimentos, relatório de perdas alimentares na fabricação não cobertas pelo Índice de Perda de Alimentos (por exemplo, onde mais de uma commodity é combinada para produzir produtos alimentícios complexos) e destinos adicionais como esgotos ou compostagem doméstica.
Dessa maneira, espera-se que países que estão no nível 1 possam gradualmente aplicar as estimações diretas do nível 2 e, que aqueles que estão no nível 2 possam gradualmente incorporar mais camadas de análises para completar as estimativas e subsidiar políticas mais efetivas.
Impactos econômicos
A partir das estimativas das perdas e desperdícios de alimentos, estima-se conservadoramente que seu custo anual é de US$ 680 bilhões e US$ 310 bilhões em países desenvolvidos e em desenvolvimento, respectivamente. Há desafios adicionais nessas estimativas, tendo em vista a valoração de diferentes processos para medir particularmente o custo-benefício do uso das perdas e desperdícios para outras atividades e produtos.
Por exemplo, a avaliação econômica da produção de metano poderia ser de menor benefício se considerado somente o rendimento de metano usado para geração de calor (57%) e eletricidade (43%), mas se consideradas as aplicações de alto valor agregado (como a utilização em veículos, eletricidade na rede etc.) do biogás, aumentaria o benefício econômico do processo. É importante, ainda, considerar nessas análises a presença ou não de subsídios governamentais. Esses processos podem ser adaptados para a utilização de diferentes produtos, inclusive resíduos de plantas específicas (como cascas e outras partes não comestíveis de plantas) e soro de queijo, para a produção de álcool combustível. Esse tipo de avaliação permite também identificar opções mais sustentáveis para o gerenciamento de resíduos, desde a incineração (com os devidos sistemas de controle de poluição integrados ao incinerador) e compostagem aos aterros. Além disso, estudos mostraram que estruturas com biorrefinarias que processam múltiplas matérias-primas, como resíduos agroindustriais e residenciais/comerciais, e que também produzem múltiplos produtos, podem ser opções mais promissoras e lucrativas (Roy et al., 2023).
Estratégias para a redução das perdas e desperdícios de alimentos
Como já observado, a urbanização está levando a uma demanda crescente por alimentos embalados e pré-preparados. Por exemplo, inovações em embalagens de alimentos podem manter a qualidade, segurança e valor nutricional dos produtos alimentícios, atendendo às necessidades e preferências dos consumidores e reduzindo as perdas e os desperdícios de alimentos, além e diminuir seu custo, especialmente ao longo de cadeias de distribuição mais longas. No âmbito do varejo, embora os supermercados possam estar ligados ao aumento do acesso a alimentos nutritivos e a tecnologia alimentar moderna tenha proporcionado benefícios em termos de redução dos desperdícios, de aumento da higiene e de redução dos efeitos adversos da sazonalidade, também têm sido associados ao aumento do fornecimento de produtos ultraprocessados, que são frequentemente possuem alta densidade energética e altos teores de sódio, gorduras e açúcar, além de muitos aditivos alimentares.
A expansão substancial nos tipos, variedades e quantidades de alimentos ultraprocessados vendidos em todo o mundo está em parte associada à expansão de supermercados e hipermercados, à industrialização dos sistemas agroalimentares, à mudança tecnológica e à globalização, incluindo o crescimento do mercado e as atividades políticas de corporações alimentícias transnacionais. Embora haja amplas variações entre regiões e países, as vendas desses produtos são mais altas na Oceania e no Pacífico, América do Norte, Europa e América Latina, mas também estão crescendo rapidamente na Ásia, no Oriente Próximo e na África.
No entanto, abordagens comerciais inovadoras utilizadas pelo setor privado ainda podem ser benéficas para os sistemas agroalimentares: por exemplo, a ideia da “economia circular” está promovendo o desenvolvimento de abordagens inovadoras para reduzir as perdas e os desperdícios de alimentos em diferentes estágios da cadeia de abastecimento de alimentos, incluindo no nível doméstico. Iniciativas de desperdício de alimentos e economia circular são outro ponto de entrada comum para iniciar processos de planejamento e políticas alimentares (incluindo a necessidade de abordagem nos próprios guias alimentares).
Além da redução das perdas e desperdícios de alimentos nos estabelecimentos e domicílios, é fundamental reconhecer que é inviável reduzi-los a zero e, portanto, a definição de destinações adequadas para esses produtos é fundamental. Nesse sentido, os alimentos perdidos e desperdiçados podem ser convertidos em compostagem ou usados para produzir biogás, evitando assim emissões prejudiciais de metano, ao mesmo tempo em que cria oportunidades de emprego e resíduos também podem ser utilizados para produzir ingredientes para a produção de ração animal. No entanto, isso requer que resíduos orgânicos municipais sejam adequadamente gerenciados não apenas no nível doméstico, mas também nos estabelecimentos de varejo de alimentos.
As instituições locais desempenham um papel crítico na criação de um ambiente favorável para reduzir o desperdício de alimentos e adotar práticas de gestão de resíduos. As áreas prioritárias identificadas no nível local para desenvolver estratégias e planejamento alimentares holísticos geralmente incluem agricultura urbana e periurbana; cadeias de abastecimento curtas; mercados alimentícios inclusivos; pontos de venda de alimentos mais saudáveis e alimentos de rua; aquisição pública de alimentos; planejamento e programação setoriais, como programas de alimentação escolar; inspeção de estabelecimentos alimentícios; regras de planejamento e zoneamento sobre estabelecimentos alimentícios e/ou marketing; e prevenção, redução e gestão do desperdício de alimentos.
As iniciativas de agricultura urbana e periurbana têm sido um dos pontos de entrada catalisadores para colocar a alimentação na agenda política local. A agricultura urbana e periurbana tem uma relação próxima com a governança alimentar urbana, pois muitas vezes vão além da produção agroecológica e do consumo sustentável para incorporar outros aspectos, como coesão social, desenvolvimento econômico e questões ambientais. Outro ponto de entrada comum é a alimentação escolar, cujo potencial para melhorar a nutrição, os hábitos alimentares e o desempenho educacional das crianças está inspirando muitos municípios de diferentes países, mesmo os de menor porte a agir. Os programas de alimentação escolar também são valorizados por seus efeitos multiplicadores, incluindo atividades complementares como a educação alimentar e nutricional, hortas escolares etc.
Existem, ainda, possíveis oportunidades de compartilhamento de alimentos online, que podem reunir e redistribuir excedentes de alimentos em comunidades locais e supermercados em áreas urbanas e rurais, ajudando assim a reduzir o desperdício de alimentos. Eles também podem ter um impacto positivo nos ambientes alimentares, especialmente quando alimentos nutritivos excedentes, como frutas e legumes, são “resgatados” e redistribuídos, tomando todos os cuidados em relação à sua segurança sanitária e adequação aos públicos aos quais se destinam.
As cadeias de frio proporcionam benefícios em termos de manutenção da qualidade dos alimentos (incluindo a qualidade nutricional) e segurança, redução das perdas e desperdícios de alimentos, e facilitação do acesso ao mercado, sendo também essenciais para manter a integridade de medicamentos veterinários e vacinas para ajudar a prevenir e gerenciar surtos de doenças zoonóticas. No entanto, as cadeias de frio apresentam riscos significativos em termos de danos ambientais que os equipamentos de refrigeração podem causar. Além disso, muitas barreiras impedem o uso de cadeias de frio em países de baixa e média renda, como falta de acesso confiável a energia e equipamentos, recursos limitados para investimentos do setor público e privado, incapacidade de pequenos agricultores de arcar com tecnologias de resfriamento e falta de habilidades técnicas, entre outros. Dentro dos países de baixa e média renda, a capacidade e utilização da cadeia de frio são muito maiores para produtos alimentícios exportados do que para alimentos destinados aos mercados domésticos. Sistemas de refrigeração ecológicos baseados em energia renovável podem ajudar as cadeias de frio a se tornarem mais sustentáveis, embora desafios como a garantia do acesso confiável a energia precisem ser enfrentados.
Por fim, inovações em embalagens de alimentos podem manter a qualidade, segurança e valor nutricional dos produtos alimentícios e reduzindo perdas e desperdícios de alimentos e diminuindo o custo de alimentos nutritivos, especialmente ao longo de cadeias de distribuição mais longas. Por exemplo, sprays orgânicos de lipídios finos em frutas e legumes podem prolongar a vida útil, oferecendo grandes benefícios em países com refrigeração limitada. Experiências recentes com as chamadas embalagens “inteligentes” mostram a possibilidade de utilização de materiais que podem monitorar as condições e o ambiente dos alimentos embalados, alertando varejistas ou consumidores sobre qualquer comprometimento ou contaminação, como mudanças de cor. Elas também podem incluir “rótulos inteligentes”, como códigos QR, que rastreiam os produtos ao longo da cadeia de abastecimento, verificando a segurança do produto e fornecendo informações adicionais (por exemplo, detalhes sobre alérgenos e origem). Alternativas às embalagens plásticas incluem soluções de biopackaging, como bioplásticos de resíduos orgânicos, embora os materiais variem significativamente em termos da quantidade de recursos renováveis utilizados em sua formulação, e podem não ser tão facilmente compostáveis quanto reivindicado (FAO, IFAD, UNICEF, WFP, 2023).
Resultados no Brasil
Em 2023, o Brasil começou a desenvolver uma linha de base para o desperdício de alimentos domiciliar, com a colaboração de parceiros nacionais, para entender as quantidades e tipos de alimentos descartados pelos domicílios. Essa linha de base, incluindo dados de três diferentes áreas do país, apoiará o relatório do ODS 12.3 e informará o desenvolvimento da Estratégia Nacional de Resíduos Orgânicos do Brasil. Até o momento, somente os primeiros resultados, da cidade do Rio de Janeiro, foram entregues.
Segundo os dados coletados para essa cidade, metade (51%) dos resíduos sólidos domiciliares é de natureza orgânica (resíduos de alimentos ou de jardim), e menos de 2 por cento desses resíduos são atualmente reciclados (principalmente papelão, latas e plásticos). O estudo de 2023 realizado no Rio de Janeiro envolveu 102 domicílios, com 86 participando ativamente, em todas as cinco áreas do município. Esses domicílios foram selecionados e categorizados com base na renda, tipo de moradia, área residencial e número de moradores. Cada domicílio separou seu lixo em três categorias: resíduos de alimentos (frutas e legumes, carne, laticínios e produtos de padaria), materiais de embalagem e resíduos residuais. Para minimizar o viés, os participantes, cientes do estudo de resíduos, não foram informados de que o foco era especificamente nos alimentos. O lixo foi coletado ao longo de oito dias, com o lixo do primeiro dia sendo excluído.
Figura 1. Resultados do estudo piloto sobre desperdícios de alimentos na cidade do Rio de Janeiro, em 2023.
Os dados preliminares da cidade (Figura 1) revelam que, em média, a quantidade mediana de desperdício de alimentos é de 212 gramas por pessoa por dia ou 77 quilogramas por pessoa por ano, próximo à média global de 81 quilogramas neste relatório. Os resíduos dividiram-se entre frutas e vegetais (62%), panificados (16%), carnes (11%) e laticínios (11%), sendo a média da fração comestível de 39% dos resíduos. Além disso, o desperdício de alimentos per capita em domicílios e o nível de renda do domicílio não pareceram estar correlacionados.
A experiência local também trouxe recomendações como campanhas de mudança de comportamento priorizando verdureiros para a disseminação de informações, campanhas de redução de resíduos para a preparação de refeições domiciliares para todos os membros da família, incluindo crianças, e fornecimento de orientações sobre tamanhos de porções e gerenciamento de sobras para aprimorar ainda mais os esforços de minimização de resíduos.
Políticas nacionais
O tema das perdas e desperdícios de alimentos já vêm sendo abordadas em políticas nacionais desde a construção da Estratégia Intersetorial para a Redução de Perdas e Desperdício de Alimentos no Brasil, lançado em 2018 (Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), 2018).
Segundo a Estratégia, que se alinha com as definições adotadas pelos organismos das Nações Unidas, como a FAO e o PNUMA. O problema das perdas e desperdícios também se relacionam com a fome e a desnutrição, na medida em que reduzem as quantidades de alimentos disponíveis para consumo humano significa, além de representarem a ineficiência dos sistemas alimentares, com consumo inútil de terra, água, energia e insumos; emissão desnecessária de gases de efeito estufa; e geração de custos significativos – mas nem sempre calculados – para a sociedade.
Os Objetivo Geral da Estratégia, então, era de coordenar ações direcionadas a prevenir e reduzir as perdas e desperdício de alimentos no Brasil (tratadas como PDA, no documento), por meio da gestão mais integrada e intersetorial de iniciativas do governo e da sociedade, de forma alinhada com a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
Em sua implementação, estavam previstos como eixos e linhas de Ação:
I. Pesquisa, Conhecimento e Inovação, contemplando a mensuração das PDA e a identificação das suas principais causas, pontos críticos e consequências, além de soluções efetivas, capazes de guiar as ações dos diversos atores no debate sobre marco regulatório, políticas públicas e estratégias de comunicação e sensibilização.
II. Comunicação, Educação e Capacitação, contemplando a comunicação e sensibilização da sociedade para o tema, incluindo a geração de informações e conhecimentos mais compatíveis com a realidade brasileira, desde a etapa de identificação de público-alvo até a elaboração de materiais educativos.
III – Promoção de Políticas Públicas, prevendo a incorporação das PDA nos instrumentos estratégicos de planejamento do Governo Federal como o Plano Plurianual (PPA) 2016-2019 e o PLANSAN 2016-2019, com vistas a garantir sua inclusão em diferentes políticas públicas, como importantes instrumentos propulsores da Estratégia.
IV – Legislação: cumprindo o que está na Constituição Federal de 1988 em relação à elaboração de leis sobre a produção e o consumo; a conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; e sobre responsabilidade por danos ao meio ambiente.
Era também previsto um Comitê Gestor da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan) para promover mecanismos de coordenação e convergência das ações propostas para a Estratégia, podendo convidar atores-chave a participarem dos processos quando necessário.
Contudo, a implementação da Estratégia foi descontinuada nos anos seguintes, com o desmonte das políticas sociais, incluindo a inatividade da Caisan, de 2019 a 2022. Dessa forma, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) realizou, em 3 de abril, uma oficina para retomar e atualizar a Estratégia Intersetorial para a Redução de Perdas e Desperdício de Alimentos no Brasil, com a com a participação de diversos especialistas do governo, instituições públicas e setor privado.
Conclusões
O relatório do PNUMA sobre os desperdícios de alimentos de 2024 traz dados importantes em relação à questão e alerta que são grandes os desafios para o alcance da meta desenhada para 2030, de diminuir pela metade o desperdício de alimentos no mundo. Esse relatório mostra uma significativa evolução dos dados já apresentados em 2021, a partir do aumento no número de países que passaram a contribuir para a construção das estimativas com dados diretos e da estimação indireta dos desperdícios naqueles que ainda não coletam dados nacionais. A partir desses dados e das metodologias de estimação, espera-se, ainda, subsidiar a elaboração de programas nacionais para o controle do desperdício de alimentos e fortalecer o monitoramento nacional e internacional dos desperdícios a partir de linhas de base e pontos de acompanhamento confiáveis.
É assustador que cerca de 1 bilhão de refeições são jogadas fora todos os dias, em todo o planeta, quando há 735 milhões de pessoas passando fome e bilhões sem acesso a dietas saudáveis e diversificadas, bem como o impacto das perdas e desperdícios para as mudanças climáticas (por meio da emissão de gases de efeito estufa) e da poluição, trazendo uma responsabilidade global para o tema, que deve interligar diferentes ODS para sua consecução.
O resultado dessa interação será um novo conhecimento coletivo sendo construído, e isso é muito mais do que a soma de todas as partes envolvidas, como parte de um processo de constituição de uma sociedade, o processo civilizador (Aun, 2024). Em outras palavras, a reflexão sobre desperdício de alimentos não se limita às soluções para a fome ou para a redução das emissões de gases de efeito estufa, pois envolve repensar o consumo no contexto dos sistemas alimentares modernos, sem deixar ninguém para trás.
Referências
AUN, N. Fome, consumo e desperdício: como desatar esse nó? Disponível em: <https://www.brasildefatopb.com.br/2024/04/15/fome-consumo-e-desperdicio-como-desatar-esse-no>.
CÂMARA INTERMINISTERIAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL (CAISAN). Estratégia Intersetorial para a Redução de Perdas e Desperdício de Alimentos no Brasil. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/seguranca_alimentar/caisan/Publicacao/Caisan_Nacional/PDA.pdf>.
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