A cooperação sul-sul brasileira em segurança alimentar e nutricional e a necessidade da (re)inspiração pelo pensamento de Josué de Castro.
Eduardo Nilson, Denise Oliveira e Silva, Erica Ell, Juliana Ubarana
Resumo
Nesse informe, discutimos o histórico recente da cooperação sul-sul brasileira em segurança alimentar e nutricional, considerando suas fortalezas e problemas, e as perspectivas de ampliação e fortalecimento dessa cooperação a partir da criação de um Centro Brasil-FAO para a cooperação Sul-Sul trilateral.
O Brasil tem um importante histórico de atuação em agendas de cooperação sul-sul em diferentes temáticas e, mas particularmente, na segurança alimentar e nutricional (SAN), que, após um período muito profícuo até 2016, recuando durante a gestão de Michel Temer e sendo paralisada durante a gestão de Jair Bolsonaro. Contudo, agora, com a retomada do protagonismo internacional brasileiro, inclusive na cooperação sul-sul, há uma perspectiva de intensa retomada e novo fortalecimento dessas agendas.
A criação do Centro de Cooperação Sul-Sul Trilateral Josué de Castro
No mês de setembro de 2023, o Diretor-Geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), Qu Dongyu, realizou uma visita oficial ao Brasil, com temáticas orientadas pelos interesses comuns do Brasil com a FAO, tais como o aumento da produtividade agrícola, a promoção da sociobioeconomia e o desenvolvimento sustentável no Brasil e no mundo. A abrangência desses temas foi claramente demonstrada pela participação de diferentes ministérios na agenda, incluindo os Ministérios da Agricultura e Abastecimento (MAPA), do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA); da Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS); e da Integração e Desenvolvimento Regional (MIDR).
Um dos produtos principais dessa visita foi a assinatura de uma Carta de Intenções para a criação de um Centro Brasil-FAO para a cooperação Sul-Sul trilateral, o “Centro Josué de Castro”. A homenagem à trajetória e legado de Josué de Castro tem grande simbolismo, dado seu pioneirismo na discussão e ação contra a fome, e traz como objetivo principal a promoção da segurança alimentar e nutricional e dos sistemas agrícolas sustentáveis em nível global.
Nesse mesmo sentido, durante a visita oficial foi reforçado que a cooperação entre o Brasil e a FAO continuará para elevar a agenda do combate à fome e à pobreza no contexto internacional, aproveitando a presidência brasileira do G20, em 2024, junto com a liderança Pró Tempore brasileira em outros organismos e fóruns internacionais, tais como a CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), o Mercosul e a OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica).
Na Carta de intenções celebrada entre a República Federativa Do Brasil e a FAO sobre o estabelecimento, no Brasil, de um centro para cooperação trilateral Sul-Sul, o “Josué de Castro Center” traz entre seus considerandos, o reconhecimento dos compromissos do Governo do Brasil em promover a segurança alimentar global e a agricultura sustentável em escala global e do papel fundamental da FAO em promover a colaboração internacional para esses objetivos, além de reforçar o compromisso brasileiro com a cooperação Sul-Sul voltada para o desenvolvimento de capacidades técnicas, organizacionais, institucionais e individuais de países em desenvolvimento do Sul Global por meio do compartilhamento de boas práticas e políticas públicas, tendo a FAO como um de seus parceiros mais tradicionais. Outro ponto relevante foi o reconhecimento das instituições científicas e técnicas brasileiras (entre os quais se inclui a Fiocruz) no desenho e implementação de políticas públicas de combate à fome e a todas as formas de má-nutrição, bem como na transformação dos sistemas alimentares. Por fim, é reforçado o mandato da FAO no apoio aos países na implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, especialmente no tocante ao fim da fome e de todas as formas de má-nutrição, por meio do desenvolvimento agrícola e da segurança alimentar nos países.
A partir disso, são declaradas as intenções de estabelecer o centro dedicado à cooperação trilateral Sul-Sul, a ser denominado “Centro Josué de Castro”, cujos objetivos incluem:
“(i) apoiar a cooperação trilateral Sul-Sul entre países do Sul Global, em particular entre o Brasil e parceiros na África, América Latina e Caribe e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), com foco no combate à fome e a todas as formas de má-nutrição e na promoção da agricultura tropical sustentável, com ênfase na agricultura de baixa emissão de carbono e na sociobioeconomia;
(ii) promover o intercâmbio das melhores práticas em políticas públicas entre países do Sul Global relacionadas à agricultura tropical sustentável e à transformação dos sistemas agroalimentares, de acordo com as capacidades nacionais;
(iii) fomentar a pesquisa, o acesso e a utilização de novas tecnologias para promover a sustentabilidade na agricultura tropical, incluindo a colaboração entre pesquisadores em indicadores específicos;
(iv) incentivar a pesquisa em instituições especializadas localizadas em zonas tropicais sobre a interligação entre práticas sustentáveis da agricultura tropical e a segurança alimentar e nutricional, com atenção especial para a intensificação sustentável da produção” (MRE, 2023).
Naturalmente, a partir dessas intenções, é preciso avançar para a implementação e institucionalização do Centro, destacando a importância de uma coordenação central e da construção de uma agenda comum, com uma estrutura interinstitucional que leve em consideração governança participativa, expertise e foco em agendas de segurança alimentar e nutricional e de sistemas alimentares saudáveis, sustentáveis, resilientes e inclusivos, bem como ausência de conflitos de interesses.
A importância de Josué de Castro como nome do Centro
Vale destacar que a homenagem a Josué de Castro é mais que merecida e oportuna, tendo em vista que em 2023 completam-se 50 anos de sua morte. O legado de Josué de Castro, parte de sua experiência pessoal no Nordeste brasileiro e que se ampliou para o nível nacional e global, com obras como Geografia da fome, Geopolítica da fome, Sete palmos de terra e um caixão e Homens e caranguejos, que sempre trouxeram reflexões transformadoras sobre a fome e a desigualdade, entre outras questões nacionais e regionais. Além disso, sua ação no enfrentamento da fome permeou outros aspectos de sua trajetória pessoal, como em sua importante atuação internacional, como Presidente do Conselho Executivo da FAO e atuando como Embaixador brasileiro junto à Organização das Nações Unidas (ONU).
Em relação a sua obra, os livros “Geografia da Fome” e “Geopolítica da Fome”, escritos entre as décadas de 1940 e 1950, ainda são atuais e influenciam o pensamento de muitos estudiosos da SAN e dos planos e políticas de governantes progressistas. Essas obras foram marcantes porque derrubaram explicações deterministas da fome, assim como a sua naturalização, descortinando suas origens socioeconômicas, posicionando-se claramente contra as interpretações demográficas que entendiam a fome como consequência de excesso populacional e prescreviam um controle de natalidade de massa. Além disso, trazem análises dos impactos sociais do subdesenvolvimento, mostrando que a fome é fruto da ação humana, de suas escolhas e da condução econômica do país., pois a fome e o subdesenvolvimento são, no fundo, uma mesma coisa, frutos da apropriação injusta da abundância de recursos da natureza.
Josué de Castro foi, portanto, uma figura muito importante contra a corrente do pensamento da época em relação à pobreza e a fome, que atribuía a miséria às condições naturais, climáticas e étnicas. Ele foi, ainda, pioneiro ao defender a instituição do salário-mínimo como garantia de segurança alimentar das famílias e formulou uma política de merenda escolar com o objetivo de reduzir a subnutrição infantil. Além disso, foi grande defensor da reforma agrária, tendo em vista que acreditava que a agricultura familiar fixaria as pessoas ao campo e garantiria a produção de alimentos necessária para a superação da miséria (Campello e Bortoletto, 2022).
Ainda nessas obras, Josué de Castro demonstra que a fome é política e cientificamente o produto de estruturas econômicas e sociais desumanas, uma fabricação sistêmica dos homens contra homens e não mera consequência do crescimento populacional que pode ser solucionada com o aumento da produção de alimentos (como preconizado pela Revolução Verde). Dessa forma, afirmou que a solução apontada para o problema da fome depende da implantação de políticas de segurança alimentar e a cooperação global e isso foi a base para políticas exitosas de enfrentamento da fome adotadas pelo Brasil nos governos Lula e Dilma, que se tornariam referência mundial e estimularam a agenda de Fome Zero em nível global.
Em distintos textos, Josué de Castro afirma que a fome é a expressão biológica de males sociológicos e está intimamente ligada com as distorções econômicas e algumas frases merecem destaque pela sua atualidade:
“A fome é um fenômeno geograficamente universal, a cuja ação nefasta nenhum continente escapa. Toda a terra dos homens foi, até hoje, a terra da fome. As investigações científicas, realizadas em todas as partes do mundo, constataram o fato inconcebível de que dois terços da humanidade sofrem, de maneira epidêmica ou endêmica, os efeitos destruidores da fome.
A fome não é um produto da superpopulação: a fome já existia em massa antes do fenômeno da explosão demográfica do após-guerra. Apenas esta fome que dizimava as populações do Terceiro Mundo era escamoteada, era abafada era escondida. Não se falava do assunto que era vergonhoso: a fome era tabu.”
A negação recente da fome no próprio Brasil mostra claramente o quanto a mensagem de Josué de Castro não pode ser esquecida e os riscos permanentes à segurança alimentar e nutricional diante de sistemas predatórios e concentradores de política e de desenvolvimento. Da mesma maneira, o pensamento de Josué de Castro é essencial no contexto do enfrentamento da fome em nível global, orientando tanto a atuação das agências das Nações Unidas quanto das políticas nacionais e da cooperação entre países, em linha com o discurso do Presidente Lula na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, chamando atenção para a necessidade de enfrentar as desigualdades e de haver uma indignação coletiva com a fome.
Cooperação sul-sul brasileira em segurança alimentar e nutricional
No campo da SAN, a cooperação sul-sul é particularmente importante na medida em que a cooperação vertical dos países do norte global e de atuação da própria FAO e do PMA foram, em grande parte, de caráter emergencial. Esse caráter humanitário, em situações de emergência, são, sem dúvida necessárias, mas a ausência de outras ações estruturantes nos campos da produção de alimentos e das políticas econômicas e sociais inclusive levou a décadas de dependência dessa ajuda humanitária, particularmente na África. Além disso, esses mecanismos de cooperação frequentemente fizerem (e ainda fazem) uso da distribuição de alimentos estranhos à cultura alimentar das populações beneficiárias, servindo, ainda, como porta de entrada para produtos ultraprocessados em novos mercados e veículos para blue washing por corporações internacionais e trazendo frequentemente estratégias prontas dos doadores, sem abertura para adaptações mais apropriadas aos contextos locais.
Com isso, existe frequentemente uma perpetuação das situações alimentares emergenciais, em que a segurança alimentar e nutricional em muitos países do sul global está fortemente condicionada pelas restrições na capacidade de acesso aos alimentos por grande parte de suas populações, tanto pela fragilidade de seus sistemas produtivos, quanto pela dependência externa criada em relação a doações, bem como pela fragilidade na governança das políticas de SAN. Nesses contextos, apesar da importância de estratégias como a doação de cestas de alimentos e a utilização de tratamento da desnutrição grave, como os alimentos terapêuticos prontos para o uso (RUTF – ready to use therapeutic foods), não podem ser descoladas do apoio a estratégias de caráter estruturante para os sistemas alimentares locais e reforço a políticas de SAN em nível local.
Além disso, outras iniciativas regionais apoiadas pelos países do norte global e mesmo por organismos do sistema das Nações Unidas, como a Aliança para a Revolução Verde na África (AGRA) e a Nova Aliança do G8 para SAN, são direcionadas para favorecer a entrada de grandes corporações multinacionais do Big Agro a partir da integração de grandes investimentos nas políticas agrárias nacionais. Esse processo é acompanhado da simplificação dos procedimentos de aquisição de terra e da transformação dos regulamentos de sementes e fertilizantes para ampliar a produção concentrada de commodities agrícolas característica dos sistemas alimentares hegemônicos e fragilizando ainda mais a produção local e diversificada de alimentos típicos. No contexto global, esses interesses corporativos colocam inclusive em risco a governança da FAO e de compromissos globais como a própria Cúpula de Sistemas Alimentares das Nações Unidas (ACT/Idec, 2022)(Nilson et al., 2023).
Em contraposição a isso, retomando a discussão da cooperação sul-sul em SAN pelo Brasil, é notável que o protagonismo brasileiro tenha aumentado significativamente primeiro entre 2003 e 2010, como o foco nas políticas de erradicação da fome e na garantia do Direito Humano à Alimentação, com um grande apoio e participação da sociedade civil, particularmente por meio do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Inclusive, a cooperação internacional em SAN esteve presente como prioridade em todas as últimas conferências nacionais de SAN (CNSAN), assim como está no documento-base da 6ª CNSAN, que acontecerá ainda em 2023 (4a CNSAN, 2011)(5a CNSAN, 2017)(CONSEA, 2023).
A partir da experiência nacional exitosa no enfrentamento da fome e na garantia da SAN da população, as políticas de SAN e sua governança (principalmente com a articulação intragovernamental e a participação ativa da sociedade civil) tornaram-se um modelo que credenciou o protagonismo internacional do Brasil no tema e essas políticas tornaram-se um ativo da própria política externa brasileira. Essas experiências foram particularmente marcantes na difusão de uma visão específica de Segurança Alimentar e Nutricional e incorporou uma ótica de cooperação sul-sul na criação do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSAN) da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 2012 (Rodrigues e Rodrigues, 2018).
Uma análise mais detalhada da cooperação sul-sul em SAN e na soberania alimentar pelo Brasil foi detalhada em diferentes aspectos por inúmeros autores (Maluf e Santarelli, 2015), analisando as transformações e a expansão da cooperação internacional para o desenvolvimento, assim como a construção do papel importante do país no fortalecimento da agenda internacional de difusão e transferência das políticas públicas que compunham o Fome Zero e que hoje fazem parte da Política Nacional de SAN brasileira, reunindo proteção social, políticas universais, produção de alimentos e compras públicas. Dentre essas políticas, destacam-se o Programa Bolsa Família, o Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), os Bancos de Leite, e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
A partir dessas políticas, além da atuação brasileira por meio do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e da Agência Brasileiras de Cooperação (ABC), as instituições brasileiras também trabalharam em cooperações trilaterais envolvendo o PMA e a FAO, com foco no desenho e implementação de programas de aquisição de alimentos da agricultura familiar e de programas de alimentação escolar que incorporam o componente da compra direta dos produtores locais.
Nesse sentido, o Centro de Excelência Contra a Fome, parceria do Governo Brasileiro com o PMA, tem articulado ao longo do tempo visitas de delegações internacionais interessadas em cooperações sul-sul com os ministérios envolvidos na SAN, incluindo diálogos com o Ministério da Saúde, nos quais eram apresentadas as agendas da Políticas Nacional de Alimentação e Nutrição, destacando os desafios no enfrentamento da dupla carga da má nutrição (desnutrição e obesidade nas mesmas populações). Um ponto sempre ressaltado foram os aprendizados nacionais com as políticas de redução da desnutrição infantil, tendo em vista que o Brasil conseguiu reduzir a desnutrição aguda e crônica durante décadas, mas acelerou essa redução entre 1996 e 2007 por meio da articulação de políticas econômicas e sociais, como educação (principalmente educação materna, por meio da universalização da educação básica), saúde (com a expansão da cobertura da atenção primária à saúde, por meio da Estratégia de Saúde da Família), empregos, transferências condicionadas de renda (começando por programas setoriais que foram unificados no Programa Bolsa Família) e saneamento (Monteiro et al., 2009).
Ao longo desse período de 2003 a 2010, foi também importante a atuação da CGFome/MRE, renovando a cooperação humanitária brasileira para um modelo de “cooperação humanitária sustentável”, que, além da intervenção sobre as emergências, incorpora o apoio a ações e políticas de recuperação e reconstrução, tornando-se a principal representante da agenda de SAN no PMRE. Com a posterior extinção da CGFome, a agenda de SAN foi incorporada pela DTS (Divisão de Temas Sociais) do MRE, que buscou a continuidade da agenda na perspectiva do fortalecimento da articulação entre as pastas governamentais, bem como o fortalecimento da agenda internacional no âmbito da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan).
Vale destacar, ainda, a discussão das potencialidades, desafios e controvérsias na cooperação brasileira na África, visto que, mesmo com as perspectivas positivas da adaptação de políticas de SAN, persiste um histórico de atuação no caráter de “projetos” sem a devida consideração das trajetórias históricas e institucionais de cada país, dificultando o alcance de mudanças estruturais significativas. Outra questão relacionada é que nem sempre os países possuem estratégias nacionais e marcos legais de SAN apropriados, considerando tanto os aspectos governamentais, tais como coordenação intersetorial, descentralização, orçamento limitado e vontade e compromisso político, quanto dificuldades para a implementação de uma efetiva participação social nas políticas. Diante da baixa participação social e da reduzida capacidade de implementação governamental, tem sido comum a implementação limitada de estratégias e compromissos assentados em interesses comuns entre a sociedade civil e governos.
Além dessas questões, é preciso reconhecer que há, na cooperação brasileira, iniciativas com propostas conflitantes com as políticas de garantia de SAN, como é o caso do ProSavana, apoiado pela Empresa Brasileira de Produção Agropecuária (Embrapa), inclusive em parceria com a ABC, que busca incentivar a ampliação de novas fronteiras para o agronegócio por meio da monocultura de milho e soja em países africanos ao invés de atuar pela diversificação da produção de alimentos tradicionais que garantem a inclusão, a resiliência e a sustentabilidade da produção e o acesso a alimentos saudáveis pelas populações locais (Maluf e Santarelli, 2015)
Depois desse rico período de ampliação e fortalecimento da cooperação sul-sul brasileira, os anos de 2017 a 2022 foram marcados pela paralização da agenda, junto com o processo de isolamento do país no cenário internacional que acompanhou o desmantelamento interno das políticas nacionais de SAN e foi acentuado pela pandemia de covid-19.
Agora, a partir de 2023, com a retomada e reconstrução das políticas de SAN, também vem uma perspectiva de novo crescimento da cooperação sul-sul, a exemplo da assinatura de um projeto de cooperação técnica bilateral entre o Brasil e Moçambique, denominado “Fortalecimento da Governança em Segurança Alimentar e Nutricional em Moçambique”, com duração prevista de cinco anos e coordenado pela ABC, em parceria com instituições brasileiras como o Ministério da Saúde e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Este projeto prevê dois eixos de atuação, sendo o primeiro na área de formação, sob responsabilidade da Fiocruz, que atuará no desenvolvimento de programa de capacitação para gestores, acadêmicos e profissionais que atuam no sistema de SAN em Moçambique; e segundo eixo focará a adaptação e implementação de políticas de alimentação e nutrição e de SAN no país, por meio de instrumentos como o guia alimentar para crianças menores de 5 anos, um catálogo de alimentos regionais, livros de receitas tradicionais, de receitas para alimentação complementar para crianças menores de 2 anos e de receitas para crianças egressas de internação por desnutrição. Diante da perspectiva positiva desse projeto, já existe, inclusive, um interesse manifestado por outros países da CPLP por outros projetos de cooperação em SAN no continente africano (ABC, 2023).
Conclusão
O Brasil vive atualmente um momento crítico e oportuno de reconstrução interna da agenda de SAN e retomada da agenda de cooperação sul-sul envolvendo essas políticas. O Brasil voltou ao Mapa da Fome das Nações Unidas em função do desmonte nas políticas de SAN e em sua governança e a experiência prévia do país, inspirada pelo pensamento de Josué de Castro e outros cientistas nacionais, mostra os caminhos para redução das desigualdades e enfrentamento da fome, considerando uma abordagem de políticas estruturais de renda, emprego, educação e saúde, junto com ações emergenciais.
Ao mesmo tempo, além da má nutrição em todas as suas formas, a SAN também se liga à agenda ambiental, a partir da ideia da sindemia que reúne a desnutrição, a obesidade e as mudanças climáticas como consequências dos sistemas alimentares hegemônicos, apoiados nas monoculturas de commodities agrícolas e na internacionalização dos produtos ultraprocessados, e tem como solução a transformação desses sistemas para favorecer modelos de produção diversificada e sustentável de alimentos frescos e minimamente processados. Esses aspectos precisam ser igualmente incorporados à agenda de cooperação, trabalhando o conceito ampliado de SAN que considera as repercussões sociais, culturais, ambientais e de saúde da alimentação e nutrição e que devem estar refletidos nos modos de produção e de consumo.
Compromissos regionais e internacionais, bem como as agendas de cooperação internacional, são poderosos instrumentos para exercício da solidariedade com os outros povos e fortalecimento do protagonismo brasileiro na agenda de SAN, além de fortalecerem as políticas nacionais. A cooperação sul-sul, em particular, se contrapõe aos mecanismos verticais de cooperação, trazendo maior proximidade e alinhamento entre os países, evitando visões colonialistas ou subalternas e respeitando a autonomia e a soberania das partes. Conforme dito por Josué de Castro e reforçado recentemente pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a fome precisa inspirar indignação, e, para além disso, precisa demandar prioridades nacionais e globais. Não deixar ninguém para trás passa primeiramente por não deixar ninguém com fome.
Referências
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