Do macro ao micro: a microbiota intestinal como espelho dos sistemas alimentares
Eduardo Nilson e Denise Oliveira
Resumo
Nesse informe, discutimos um documento recentemente publicado pela FAO que apresenta as evidências mais recentes sobre como a microbiota intestinal é uma ponte entre os sistemas alimentares e a nutrição e a saúde humana, por meio de questões como o uso de agrotóxicos, o ultraprocessamento dos alimentos e a resistência antimicrobiana.
Em setembro de 2024, a FAO publicou um estudo amplo sobre o papel da ciência da microbiota no enfrentamento da má nutrição e das doenças crônicas não-transmissíveis – DCNTs (“The role of microbiome science in addressing malnutrition and noncommunicable diseases”), que reforça a ligação do mundo microscópico dos microrganismos que habitam nossos corpos com nossa saúde e como são influenciados e determinados em grande parte pelos sistemas agroalimentares. Assim, o interior de nossos corpos está fortemente ligado às cadeias locais e globais de produção e consumo de alimentos ao longo de todo o curso de nossas vidas, definindo, inclusive, o risco e proteção contra doenças (Fontaine et al., 2024).
Como já destacado em grande parte de nossos informes, estamos em uma situação preocupante em relação aos avanços nos ODS, tendo a dupla carga da má nutrição como um desafio particular (FAO/IFAD/UNICEF/WFP/WHO, 2024)(World Health Organization (WHO), 2024). Enquanto isso, os sistemas alimentares hegemônicos, além de determinarem o estado nutricional e as DCNTs associadas à alimentação inadequada, também estão ligadas às mudanças climáticas , trazendo a sindemia global de desnutrição, obesidade e mudanças climáticas (Swinburn et al., 2019).
Olhando para as questões de má nutrição em todas as suas formas, sabemos que são multicausais, e, dentre os fatores apontados pelas evidências, está incluída a centralidade das dietas não saudáveis como uma causa comum desses desfechos, desde a desnutrição até a obesidade. Nesse sentido existe um crescente corpo de evidências mostrando que os seres humanos têm uma relação simbiótica com a comunidade de bilhões de microrganismos presentes em seus intestinos – a microbiota intestinal – e que isso pode ter implicações cruciais para a nutrição e a saúde.
A microbiota intestinal humana é uma comunidade complexa de microrganismos que vivem no trato digestivo, composta por mais de 1500 espécies de diferentes filos, sendo que 99% das bactérias da microbiota são provenientes de cerca de 30 a 40 espécies. Em nosso corpo, o cólon, por si só, contém a maior população da diversa microbiota humana e pode abrigar até 100 trilhões de bactérias.
A microbiota intestinal é adquirida pela primeira vez durante o nascimento, por transmissão vertical da mãe, porém as evidências sugerem que os padrões alimentares ao longo da vida podem promover ou prejudicar o desenvolvimento e a manutenção da microbiota intestinal. Por exemplo, a dieta materna e as práticas de alimentação nos primeiros anos de vida são fatores-chave que impactam o desenvolvimento de um microbiota intestinal saudável durante os primeiros três anos de vida. Nos anos seguintes, microbiotas que apoiam a saúde têm sido associados a dietas ricas em fibras e fitonutrientes – resultantes do consumo de uma grande diversidade de alimentos vegetais, minimamente processados (em vez de ultraprocessados) e alimentos fermentados.
Há crescente evidências de que a microbiota medeia alguns dos efeitos conhecidos da dieta sobre a saúde, e estudos sobre a microbiota também trouxeram novos possíveis mecanismos sobre a interconectividade entre nutrição e saúde. Assim, com base no conhecimento científico disponível, pode ser apontada uma série de inovações baseadas na microbiota e intervenções dietéticas que poderiam ajudar a combater tanto as DCNTs quanto as formas de desnutrição, com implicações inclusive no campo da regulação dos alimentos.
A microbiota intestinal está profundamente envolvida na fisiologia do hospedeiro por meio, entre outros, da produção de metabólitos que estão envolvidos na regulação de várias funções do organismo, incluindo digestão, metabolismo, comunicação intestino-cérebro e o sistema imunológico. Em consequência disso, distúrbios nas funções e composição da microbiota (como a perda de biodiversidade, perda de bactérias benéficas e aumento de patógenos) são frequentemente referidos como disbiose e estão associados a várias formas de desnutrição, bem como a algumas DCNTs relacionadas à dieta. Além disso, um uma série de fatores ambientais pode perturbar ou melhorar a relação simbiótica entre os seres humanos e sua microbiota, com grandes implicações para a saúde humana, que se aplicam não apenas durante o período de desenvolvimento de uma criança, mas ao longo da vida.
Nesse sentido, as evidências em relação à microbiota também reforçam novos mecanismos pelos quais a adesão ao longo da vida a uma dieta saudável é crucial para a prevenção de todas as formas de má nutrição, incluindo a desnutrição, o sobrepeso, a obesidade e as DCNTs relacionadas. Os dados específicos do impacto da microbiota então sugerem a importância de uma alta ingestão de fibras alimentares (até mesmo maior do que os níveis recomendados atualmente), o consumo de uma grande diversidade de alimentos vegetais não processados e minimamente processados e o consumo de uma variedade de alimentos fermentados.
Desse modo, a adesão a uma dieta saudável durante toda a vida depende não apenas do indivíduo, mas também de vários outros fatores nos sistemas agroalimentares. Esses pontos incluem desde a educação nutricional e programas de conscientização dos consumidores e guias alimentares baseados em alimentos até a gestão e regulamentação do ambiente alimentar, o desenvolvimento de produtos alimentícios, o processamento e reformulação dos alimentos, a diversificação e melhoramento de culturas e própria avaliação de risco na segurança dos alimentos.
Evidências sobre a relação entre a microbiota e a saúde e a nutrição
Segundo a publicação, muitos estudos têm demonstrado a associação entre a industrialização, a urbanização e a subsequente transição nutricional entre populações com distúrbios na microbiota intestinal (comumente conhecidos como disbiose) e com o aumento de DCNTs. Essa relação está vinculada ao fato de que a microbiota intestinal existe justamente na interface entre os alimentos ingeridos, o epitélio intestinal e a fisiologia do hospedeiro, de forma que ela pode desempenhar um papel significativo na mediação de alguns dos efeitos do ambiente na saúde humana.
De modo geral, grande atenção é dada às doenças crônicas associadas à presença de “patobiontes” (microrganismos específicos da microbiota com potencial patogênico, associados a condições inflamatórias crônicas), como a associação do Helicobacter pylori, envolvido em úlceras duodenais e cânceres gástricos e até contribuir para a obesidade e a doença hepática gordurosa não alcoólica. No entanto, a maioria das patologias crônicas está associada a mudanças mais complexas da população microbiana, em combinação com outros determinantes, de maneira que ainda existe grande discussão sobre a definição de um “microbiota saudável” e sobre os elementos críticos da disbiose relacionados à saúde.
Mesmo com esses pontos com falta de consenso, a maioria dos cientistas que estudam a microbiota concorda em várias características que descrevem microbiotas associados a doenças, tais como uma perda geral de diversidade (taxonômica e/ou funcional), uma perda ou redução das chamadas bactérias benéficas e uma maior proporção de patógenos potenciais. Inclusive, pelo menos uma dessas três características de disbiose está associada, em humanos, a condições patológicas como obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, câncer colorretal, doença celíaca e alergias alimentares, assim como asma, doenças autoimunes e doenças neurológicas. Mesmo em relação à desnutrição infantil, a publicação destaca que vários estudos identificaram diferenças ao comparar os microbiotas de crianças saudáveis com os de crianças desnutridas que sofrem de Kwashiorkor (forma de desnutrição aguda grave), trazendo uma microbiota intestinal caracterizada por uma maturação anormal e, em alguns casos, por um enriquecimento em bactérias patogênicas ou diferentes comunidades de protozoários e fungos.
Naturalmente, a transição de associação para causalidade no estudo da microbiota intestinal é um desafio, pois a maioria dos estudos sobre microbiotas são observacionais, o que impede a determinação clara se as mudanças na microbiota são consequência de alterações nos parâmetros fisiológicos do hospedeiro, ou se desempenham um papel causal na patologia. Portanto, para avaliar a causalidade, têm sido usados diferentes métodos como modelos animais sem microbiota (germ-free), transplante de microbiota fecal e outras abordagens analíticas.
Fatores que impactam a microbiota intestinal
Segundo a publicação, a microbiota é moldada por diversos fatores, como genética, idade, sexo, geografia, dieta, tipo de parto, medicamentos e estilo de vida, sendo que os fatores ambientais geralmente desempenham um papel maior do que a genética do hospedeiro. Em parte, isso se explica porque os seres humanos coevoluíram com um microbiota central, que se tornou essencial para a saúde. Por exemplo, estudos sobre a microbiota intestinal em diferentes populações ao redor do mundo identificaram perturbações na relação simbiótica entre humanos e seu microbiota após a transição gradual de um estilo de vida tradicional para um industrializado/urbanizado.
Isso fica mais evidenciado na análise dos perfis de microbiota de populações rurais com práticas agrícolas tradicionais apresentam um estado intermediário entre os microbiotas de caçadores-coletores e aqueles de indivíduos que vivem em ambientes urbanizados. Nessa gradação, a transição para um estilo de vida urbano leva a uma rápida e significativa redução na diversidade bacteriana, uma redução ou perda completa de certos gêneros, menor produção de certos ácidos graxos de cadeia curta e um aumento na riqueza e abundância de genes de resistência antimicrobiana. Ao mesmo tempo, essas mudanças correlacionam-se com um maior risco de DCNTs em humanos e são consistentes com experimentos controlados e descobertas mecanicistas em modelos animais.
A partir dessas evidências, surgiram diferentes hipóteses que propõem que vários fatores, incluindo a transição nutricional para uma dieta ocidental (caracterizada por alto teor de açúcar, alto teor de gordura e baixo teor de fibras), a melhoria do saneamento, o uso generalizado de antimicrobianos e a diminuição do contato direto com o ambiente natural (incluindo solo, plantas e animais) levaram coletivamente a mudanças drásticas na microbiota humano como um dos motores do aumento das DCNTs.
Em termos do curso da vida, os primeiros 1000 dias de vida (da concepção até o segundo aniversário da criança) são reconhecidos como uma janela crítica e única de oportunidade para a aquisição inicial da microbiota intestinal da criança. Esse processo começa com a transmissão vertical da microbiota da mãe (sendo, portanto, dependente da microbiota materno), seguido pela sua maturação até atingir uma composição semelhante à de um adulto por volta dos três anos de idade. Como a microbiota intestinal influencia muitas funções do hospedeiro (incluindo as funções digestivas, imunológicas e neurológicas), acredita-se que desempenhe um papel fundamental no desenvolvimento infantil.
Após o modo de nascimento, a dieta é o fator mais forte na determinação da maturação da microbiota infantil, e os efeitos benéficos do aleitamento materno, em particular, são bem documentados – tanto para a saúde materna quanto para a saúde da criança. Por exemplo, o aleitamento materno está associado a um risco reduzido de obesidade, diabetes tipo 2, asma e doenças cardiovasculares e a microbiota intestinal pode contribuir para esse efeito, enquanto o uso de fórmula infantil está relacionado a um risco aumentado de sobrepeso e algumas DCNTs.
É crítico considerar a qualidade geral da dieta nesse contexto. Nesse sentido, as interações entre vários componentes dietéticos e a microbiota intestinal são complexas, e enquanto alguns efeitos podem ser sinérgicos, outros podem ser antagônicos. Inclusive, estudos observacionais e ensaios clínicos randomizados, envolvendo tanto pacientes quanto indivíduos saudáveis, demonstraram que a adesão à dieta mediterrânea está associada a várias características positivas na composição e função da microbiota, que podem mediar alguns dos efeitos da dieta na saúde. De modo geral, se demonstraram fortes correlações entre a composição microbiana e a diversidade alimentar, destacando a relação entre a microbiota e padrões dietéticos associados à saúde, bem como a importância de ir além dos nutrientes e alimentos isolados na pesquisa dieta-microbiota.
Existe, ainda, uma estreita relação entre a microbiota e nutrientes. Por exemplo, algumas fibras dietéticas encontradas principalmente em alimentos de origem vegetal, como frutas, vegetais, leguminosas, nozes e grãos integrais, são minimamente digeridas no sistema digestivo humano superior e chegam ao cólon, onde alimentam diversas bactérias degradadoras de fibras. Contudo, tanto a quantidade quanto a qualidade (fontes) das fibras parecem ser importantes, visto que a vasta maioria dos estudos demonstrou múltiplos efeitos benéficos das fibras nos alimentos in natura e minimamente processados na saúde, mas relataram nenhum efeito ou, em alguns casos, impactos negativos da alta ingestão de fibras solúveis purificadas, como a inulina. Portanto, esses resultados sugerem a importância da matriz alimentar na qual a fibra está contida, assim como a dieta global.
Outros fatores dietéticos associados à microbiota incluem os fitonutrientes encontrados em alimentos de origem vegetal (particularmente os in natura e minimamente processados), especialmente os polifenóis, que possuem propriedades promotoras da saúde por meio de efeitos anti-inflamatórios, antiobesidade e antidiabéticos, que parecem ser parcialmente explicados pela sua capacidade de modular a microbiota intestinal.
Outros estudos têm demonstrado que as dietas ricas em gorduras reduzem ligeiramente a diversidade bacteriana e aumentam o estado pró-inflamatório, enquanto as proteínas dietéticas são uma fonte importante de aminoácidos para a síntese de proteínas bacterianas e também são fermentadas, que, em alguns casos, podem ser produzidos metabolitos potencialmente tóxicos que podem estar associados ao consumo de algumas proteínas animais, como carnes vermelhas e carnes processadas. Além destes, os micronutrientes também impactam a composição da microbiota intestinal e, dependendo do micronutriente, a microbiota intestinal pode desempenhar diversos papéis, variando de produtor (ou seja, de vitaminas K e B12) a competidor (ou seja, por ferro).
Migrando para hábitos e sistemas alimentares, vale destacar os alimentos fermentados que fazem parte da dieta ancestral dos primatas humanos e, desde então, têm sido produzidos deliberadamente (por meio de fermentação controlada) e integrados às culturas humanas por milênios, que surgiram para garantir a segurança dos alimentos e manter suas qualidades nutricionais desses alimentos (por exemplo, remoção de componentes potencialmente tóxicos, maior durabilidade e alta disponibilidade de micronutrientes).
Como marcadores da dieta ocidental, associada aos sistemas alimentares hegemônicos, o documenta trata dos alimentos altamente processados (ainda pelo não reconhecimento do termo ultraprocessados pela FAO e parte da comunidade científica). O consumo de produtos ultraprocessados tem sido associado a um grande conjunto de doenças (Lane et al., 2024) e entre os mecanismos pelos quais afetam a saúde incluem os efeitos que possuem sobre a microbiota. Por exemplo, estudos observacionais em humanos com adultos saudáveis mostraram que produtos ultraprocessados estavam associados a uma menor alfa-diversidade da microbiota e que carboidratos refinados e açúcares dietéticos estão associados à disbiose (Srour et al., 2022)(Zinöcker e Lindseth, 2018).
Ainda associados aos sistemas alimentares hegemônicos, tendo em vista as necessidades das monoculturas, da pecuária intensiva e dos aditivos alimentares nos produtos ultraprocessados, temos o efeito dos compostos exógenos nos alimentos, ou seja, as substâncias que podem ser introduzidas intencionalmente na cadeia alimentar (ou seja, por meio do uso de aditivos alimentares durante o processamento), introduzidos na produção primária (por exemplo, resíduos de medicamentos veterinários, incluindo antibióticos, e pesticidas) ou presentes inadvertidamente na dieta (por exemplo, como poluentes ambientais e contaminantes industriais). Assim como os nutrientes, as interações dentro do triângulo microbiota-químico-hospedeiro para esses compostos são multidirecionais, de modo que os compostos exógenos podem interagir com a microbiota intestinal, seja diretamente ou indiretamente (alterando o ambiente intestinal), possivelmente alterando sua composição, diversidade e atividade.
Por exemplo, em estudos sobre pesticidas, como o clorpirifós e glifosato, mostraram possível indução de disbiose intestinal e outras alterações microbianas e outros sobre medicamentos veterinários mostraram a interrupção da barreira de colonização e mudanças na população de bactérias resistentes. Além deles, os alimentos também podem atuar como veículos para contaminantes onipresentes, como microplásticos, que induziram alterações na microbiota intestinal de todos os modelos animais estudados, lembrando que os principais produtores de plásticos no mundo são empresas de alimentos e bebidas ultraprocessadas (Changing Markets Foundation, 2020).
Os aditivos alimentares, por sua vez, compreendem um amplo grupo de substâncias com diferentes naturezas químicas, frequentemente encontradas em alimentos processados e ultraprocessados. Entre eles, os adoçantes são um dos aditivos mais estudados. A avaliação de adoçantes artificiais (como acessulfame de potássio, aspartame, ciclamato, neotame, sacarina e sucralose) em roedores mostrou seu potencial para induzir disbiose intestinal e alterar o metabolismo da glicose.
Outra questão importante se refere ao processamento dos alimentos, visto que esses processos impactam a microbiota intestinal, com muitos efeitos negativos associados aos produtos ultraprocessados. Por exemplo, algumas técnicas de processamento podem alterar a matriz alimentar, envolvendo a remoção de estruturas protetoras, como as camadas de farelo, ricas em fibras e polifenóis e outros processos também reduzem a quantidade de polifenóis.
Vale recordar que substâncias específicas são abordadas geralmente por estruturas regulatórias a nível global (como o Codex Alimentarius) e mais especificamente por agências reguladoras em muitos países, que são informadas por avaliações de risco. Essas avaliações determinam valores orientadores baseados em saúde, como a ingestão diária aceitável (ADI), expressos em níveis de dose, assim como limites regulatórios, como níveis máximos de resíduos (MRLs) ou limites máximos (MLs), para garantir que a concentração dessas substâncias em alimentos seja mantida dentro de limites seguros, para proteger os consumidores de riscos potenciais à saúde a longo prazo e garantir um comércio seguro como objetivo primordial. Contudo, apesar de já terem se iniciado discussões sobre a possível incorporação de considerações sobre a microbiota na avaliação de risco químico de produtos, o efeito dessas substâncias sobre a microbiota não é considerado em âmbito regulatório.
Por outro lado, já existem produtos relacionados à microbiota no mercado, mas muitos apresentam alegações de saúde ou marketing pouco claras, especialmente em relação a alguns probióticos. Inclusive, mesmo no âmbito do Codex Alimentarius, as recomendações sobre probióticos ainda estão em processo de discussão, apesar dessa questão ser importante tanto no sentido de garantir a saúde das pessoas quanto de protegê-las de informações enganosas. Isso exigirá ações concertadas de diversos atores responsáveis, incluindo a comunidade de pesquisa, profissionais de saúde e alimentação, o setor privado, agências reguladoras, a mídia e formuladores de políticas.
Vale destacar, por fim, que, além das medidas regulatórias, os guias alimentares baseados em alimentos são instrumentos centrais para fornecer orientações ao público sobre alimentos apropriados localmente e padrões dietéticos, visando atender às necessidades nutricionais, prevenir a desnutrição e promover a saúde geral. Embora esses guias já incentivem a diversidade alimentar e a redução do consumo de alimentos não saudáveis, há espaço para recomendações mais contextualizadas, informadas pela pesquisa sobre microbiota.
Implicações para os sistemas agroalimentares
Sabidamente, a adoção contínua de dietas saudáveis que considerem o papel da microbiota na nutrição e na saúde pode ter implicações críticas para os sistemas agroalimentares como um todo. Nesse contexto, a informação sobre o papel da microbiota na nutrição e na saúde deve ser acessível a consumidores e cidadãos de forma clara e compreensível, baseando-se em evidências científicas. Da mesma maneira, a compreensão de como a microbiota impacta a vida cotidiana pode ajudar os consumidores a tomarem decisões mais informadas sobre saúde e nutrição, além de promover uma maior aceitação de inovações relacionadas à microbiota, inclusive em setores como a agricultura.
Todos os elementos dos sistemas agroalimentares devem, portanto, considerar as suas implicações sobre a microbiota:
- – No âmbito da produção de alimentos, isso pode ser alcançado pelo aumento da agrobiodiversidade para promover a disponibilidade e diversidade de cultivos, incluindo culturas tradicionais subutilizadas, especialmente aquelas ricas em fibras e fitonutrientes., o melhoramento de plantas e o aprimoramento de práticas agrícolas e de pecuária, aproveitando melhor os fatores bióticos e abióticos, como manejo de culturas e qualidade do solo, e seus impactos sobre o conteúdo de fibras e fitonutrientes, assim como usando a sazonalidade a favor da produção de compostos bioativos.
- Na distribuição de alimentos, há efeitos positivos e negativos associados à predição e extensão da vida útil dos alimentos. A distribuição de alimentos envolve tratamentos pós-colheita para preservar a qualidade e segurança de produtos alimentares frescos. Compreender a microbiota desses produtos pode ajudar a prever a vida útil e identificar agentes de bioproteção que diminuem o desperdício e técnicas de armazenamento e a produção de alimentos também podem modificar a microbiota presente em tecidos vegetais, contribuindo para a diversidade da microbiota intestinal se consumidos crus.
- No processamento, há possibilidades associadas à reformulação focadas em ingredientes in natura e minimamente processados que garantam maior conteúdo de fibras e fitonutrientes, assim como implementando mais tecnologias de fermentação, enquanto se reduz ou, preferencialmente, elimina os aditivos alimentares.
- No campo da publicidade, é necessária forte regulação, desde as fórmulas infantis (baseadas no Código Internacional de Substitutos do Leite Materno) até a rotulagem dos alimentos, particularmente em relação às alegações de saúde.
- No campo das compras de alimentos, é fundamental construir ambientes alimentares que garantam a acessibilidade física e financeira a alimentos locais diversificados, in natura e minimamente processados.
- Em relação ao consumo, é fundamental a educação de consumidores para a literacia sobre a microbiota e sobre os padrões alimentares recomendados pelos guias alimentares baseados em alimentos.
- Por fim, pode também haver uma relação dessas medidas com a redução de perdas e desperdícios, na medida em que a fermentação e o uso de probióticos pode ajudar na valorização de alimentos que seriam perdidos. Por exemplo, resíduos agroindustriais, como cascas de frutas, são ricos em carboidratos e podem ser utilizados para produzir polímeros prebióticos para consumo humano e políticas focadas em uma economia circular podem incentivar a valorização de resíduos.
Conclusão
O documento sobre a relação entre microbiota intestinal e a nutrição e a saúde vai para além desse aspecto e traz a relação ainda maior dela com os próprios sistemas alimentares. Nesse sentido, reforçam-se os argumentos em relação à transformação necessária nos sistemas alimentares. Tomando a microbiota como marcador, os sistemas agroalimentares hegemônicos têm contribuído negativamente para a saúde humana e de nossos microrganismos simbiontes, desde a produção até o processamento dos alimentos, enquanto as formas reconhecidas de melhorar a qualidade da microbiota e promover a saúde são justamente relacionadas ao consumo de alimentos in natura e minimamente processados diversificados, produzidos sem agrotóxicos e de maneira sustentável.
A evidência já existente sobre os múltiplos benefícios à saúde resultantes do consumo de dietas saudáveis é robusta. A ciência da microbiota pode fornecer explicações importantes sobre os mecanismos potenciais pelos quais dietas saudáveis impactam positivamente a saúde e mais evidências sobre a saúde, a nutrição e a microbiota serão essenciais para fortalecer esse campo.
Em linha com as recomendações dietéticas atuais, a pesquisa sobre microbiotas reforça a importância de consumir uma ampla variedade de alimentos vegetais (ou seja, frutas, vegetais, nozes, sementes, leguminosas e tubérculos) para manter uma população microbiana saudável e promover a diversidade microbiana. Os sistemas alimentares são intimamente ligados ao processo saúde-doença e à nutrição humana e a microbiota é uma interface entre o macro e o micro que deve ser considerada inclusive nas políticas, com importantes implicações também sobre as questões ambientais relacionadas.
Referências
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