O Estado da Alimentação e da Agricultura 2024: O custo dos sistemas agroalimentares aumenta ainda mais

Eduardo Nilson
Denise Oliveira e Silva

 

Resumo: Nesse informe, relataremos a publicação “O Estado Da Alimentação e da Agricultura 2024”, produzido pela FAO, que atualiza as estimativas dos custos reais dos sistemas agroalimentares (true cost accounting – TCA), com vistas a melhor estimar os custos da produção dos alimentos e seus impactos sobre o ambiente, sobre a saúde e os modos de vida, que chegama US$11 trilhões anualmente. As estimativas atuais foram também analisadas segundo uma nova tipologia de classificação dos países segundo tipos de organização dos sistemas alimentares, de modo a permitir análises de custos e de alternativas para seu enfrentamento em cada contexto específico.

O novo relatório “O Estado Da Alimentação e da Agricultura 2024” (Food and Agriculture Organization (FAO), 2024a) atualiza e aprofunda as análises de sua edição anterior, que reforçouque, enquanto as ati os sistemas agroalimentares geram benefícios significativos para a sociedade, também geram impactos negativos na sustentabilidade econômica, social e ambiental. Para tanto, desenvolveu e trabalhou uma metodologia chamada de custos ocultos ou custos reais dos sistemas agroalimentares (o true cost accounting), que chegam a representar em torno de 10% do produto interno bruto global, demandando uma ação estratégica por todos os atores dos sistemas agroalimentares e a continuidade do chamamento para a transformação dos sistemas agroalimentares globais.

Outra questão relevante é que, apesar da transformação dos sistemas agroalimentares trazer um importante saldo de ganhos globais, os benefícios e custos gerados seriam distribuídos de maneira desigual entre as partes interessadas e os países ao longo do tempo.
Nesse contexto o relatório de 2024 baseia-se nos achados da edição de 2023, aprofundando o uso de avaliações de custo real dos sistemas agroalimentares e identificando intervenções políticas voltadas para a transformação, usando conjuntos de dados globais atualizados e
fornecendo uma análise detalhada dos custos ocultos associados a padrões alimentares não saudáveis e doenças crônicas não transmissíveis em 156 países.

Esse relatório novamente destaca que o primeiro passo para tornar os sistemas agroalimentares mais inclusivos, resilientes e sustentáveis é justamente revelar o verdadeiro custo dos alimentos, visto que as atividades dos sistemas agroalimentares geram benefícios
significativos para a sociedade, mas também têm impactos negativos na sustentabilidade econômica, social e ambiental: os custos ocultos quantificados dos sistemas agroalimentares representam cerca de 10% do produto interno bruto global. Portanto, é necessária uma ação
estratégica do local ao global, e todos os atores dos sistemas agroalimentares – de produtores e empresas agroindustriais a consumidores e governos – desempenham um papel crucial. Segundo o novo estudo, embora a transformação dos sistemas agroalimentares traga
um ganho global líquido, os benefícios e custos seriam distribuídos de maneira desigual entre as partes interessadas e os países ao longo do tempo. Nesse sentido, o Estado da Alimentação e da Agricultura 2024 baseou-se nos resultados apresentados na edição de 2023, aprofundando o uso de avaliações de custo real dos sistemas agroalimentares e identificando intervenções políticas voltadas para a transformação. Usando conjuntos de dados globais atualizados, o relatório confirma as estimativas anteriores dos custos ocultos quantificados dos sistemas agroalimentares e fornece uma análise detalhada dos custos ocultos associados a padrões alimentares não saudáveis e doenças crônicas não transmissíveis em 156 países. No novo relatório, como outro ponto novo, as descobertas foram analisadas sob a ótica de seis categorias de sistemas agroalimentares, levando em conta diversos resultados e custos
ocultos que exigem diferentes intervenções políticas. Além disso, como de costume nas publicações da FAO, são apresentados estudos de caso com avaliações detalhadas de contextos nacionais, locais e de cadeias de valor que ilustram os impactos econômicos, sociais e ambientais das práticas atuais para orientar intervenções políticas, reforçando que, em todos os contextos, é fundamental a realização de consultas inclusivas com as partes interessadas para informar intervenções e reconciliar desequilíbrios de poder e compensações.

O custo real dos sistemas agroalimentares
Antes de avançar sobre os dados do relatório de 2024, vale a pena revisitar o relatório de 2023, visto que foi pioneiro na proposição da análise do custo real da transformação dos sistemas agroalimentares, com vistas a melhor subsidiar as discussões nessa temática e
preencher essa lacuna de informações a partir de uma abordagem inovadora de estimação dos custos reais dos sistemas agroalimentares e seus impactos (Food and Agriculture Organization(FAO), 2023).

Essa estimação é particularmente importante diante da necessária a priorização de soluções sistêmicas para o enfrentamento de desafios que vão desde a falta de disponibilidade e acessibilidade a alimentos até os efeitos da crise climática, da perda de biodiversidade, da
desaceleração econômica sobre os preços dos alimentos, bem como o aumento da pobreza. Além disso, os novos dados podem apoiar a urgência de transformação dos sistemas agroalimentares para aumentar sua eficiência, inclusão, resiliência e sustentabilidade, alinhados
com a agenda 2030 de desenvolvimento sustentável e aproveitando o momento criado por iniciativas como a Cúpula de Sistemas Alimentares das Nações Unidas como fóruns e movimentos para fortalecer e ampliar a prioridade política por governos nacionais, assim como ganhar apoio de atores sociais para desenvolver soluções inovadoras alinhadas com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

A metodologia proposta no relatório de 2023 busca a estimação dos custos reais dos sistemas agroalimentares pelo chamado TCA (true cost accounting), que contabiliza os custos totais desses sistemas, incluindo seus custos ocultos, sobre o meio ambiente, sobre a saúde e
sobre os modos de vida.

Particularmente, a questão dos custos ocultos dos sistemas agroalimentares é componente muito relevante, tendo em vista que se deve incluir problemas como os custos de produção e o aumento dos custos dos alimentos, que deve incluir aspectos como os incentivos
aos produtores e consumidores e sua influência sobre a transformação dos modelos de produção, distribuição e consumo. Isso inclui, por exemplo, agregar custos normalmente não quantificados como emissões de gases de efeito estufa, emissões de nitrogênio, uso de água,
transições no uso de terra e pobreza, além dos impactos da pobreza e das perdas de produtividade causadas por padrões alimentares não-saudáveis e pela desnutrição.

Outro ponto importante trazido pela aplicação dessa nova metodologia é que, além dos resultados consistentes e comparáveis para um grande conjunto de países, reforça-se aspectos metodológicos e de disponibilidade de dados para a realização de novas análises usando o TCA, como contribuição para a gestão e a pesquisa no campo dos sistemas agroalimentares, mesmo no contexto dos países de baixos e médios rendimentos.

Por fim, o relatório de 2023 destaca que, por se tratar de uma nova metodologia, constitui um ponto de partida para futuras análises e aprimoramentos, além de buscar o aprofundamento da avaliação dos dados nacionais existentes, incluindo a avaliações por atores
nacionais e por especialistas para informar o planejamento mais profundo e específico de políticas nacionais e a orientação de investimentos para guiar a transformação dos sistemas agroalimentares do nível local ao nacional.

Em nossa perspectiva, como pesquisadores dos sistemas alimentares é desejável também que essas metodologias permitam outras análises como a comparação de cenários de mudanças que reforcem os modelos de produção de alimentos que garantam a biodiversidade
e a preservação ambiental, como a agroecologia. Esses dados devem reforçar a priorização da comida de verdade, incentivando circuitos curtos de produção e consumo e economia circular e buscando reverter as tendências atuais de substituição dos alimentos in natura e minimamente processados, que deveriam ser a base de nossas dietas, por produtos alimentícios ultraprocessados.

Mensagens principais do relatório

O relatório de 2024 traz 14 mensagens principais relacionadas aos sistemas agroalimentares globais, particularmente no tocante ao chamamento para a transformação dos sistemas hegemônicos que são responsáveis por grande parte dos custos estimados,
principalmente considerando os custos ocultos. Para diferenciar as mensagens do relatório, as apresentamos em itálico, enquanto nossos comentários que vêm na sequência estão sem esse destaque.

1. Relembrando o relatório O Estado da Alimentação e da Agricultura 2023, a utilização da metodologia de contabilidade de custo real (TCA) apresentou as primeiras estimativas preliminares dos custos ocultos globais dos sistemas agroalimentares e destacou a necessidade
urgente de enfrentá-los. No documento de 2024, são apresentados aprimoramentos dessas estimativas, confirmando que os custos ocultos globais quantificados dos sistemas agroalimentares excedem 10 trilhões de dólares em paridade do poder de compra (PPP) de 2020.
Portanto, são necessárias e urgentes ações estratégicas por parte de todos os atores para aumentar o valor dos sistemas agroalimentares para a sociedade.

Trazer a quantificação da carga econômica tem se mostrado um argumento extremamente relevante para muitas políticas, inclusive regulatórias e fiscais, portanto, resultados como os que o relatório traz são subsídios importantes para fortalecer compromissos
e ações. Além disso, os resultados podem e devem ser usados também para avaliar diferentes cenários de políticas, pensando em análises de custo-efetividade, por exemplo, bem como mostrando os custos da inação.

Dados dessa natureza mostraram-se essenciais para avanços em agendas como a redução do tabaco, global e nacionalmente, e devem ser aplicados aos sistemas alimentares como um todo, traduzindo as externalidades negativas em termos epidemiológicos e econômicos (representadas em grande parte pelos custos ocultos que o relatório aponta), dando transparência a esses impactos para governantes, legisladores, população e até mesmo para agentes do setor privado.

2. Padrões alimentares não saudáveis relacionados a doenças crônicas não transmissíveis representam 70% de todos os custos ocultos quantificados por meio da metodologia. Usando as métricas do Estudo de Carga Global da Doença (GBD – Global Burden
of Disease), observou-se que os maiores fatores de risco globais são o baixo consumo de grãos integrais, o alto consumo de sódio e a baixa ingestão de frutas. O relatório destaca, porém, que, devido a limitações nos dados, os custos relacionados à desnutrição (aguda e crônica, assim como a deficiência de micronutrientes) não foram calculados no relatório, de modo que os números apresentados são uma subestimação, um limite inferior para os verdadeiros custos ocultos de saúde.

Para além do que coloca o relatório, há um conjunto maior de consequências da alimentação não saudável para a saúde, considerando os efeitos do consumo dos produtos ultraprocessados, que não se resume à substituição dos alimentos in natura (fontes de fibras,
micronutrientes e outros componentes fitoativos, entre outros) e ao excesso de nutrientes críticos, como sódio, gorduras e açúcar (associados tradicionalmente a um grande conjunto de doenças crônicas não-transmissíveis). Particularmente, a abordagem isolada dos nutrientes críticos frequentemente traz soluções como a reformulação dos produtos sem considerar os efeitos dos ultraprocessados como um todo e por isso deve ser vista com cautela, numa perspectiva de redução de danos e não de aumento da saudabilidade ou sustentabilidade dos produtos.

Nesse sentido, ainda, a literatura científica internacional já mostra impactos dos ultraprocessados por meio das transformações físicas na matriz alimentar (que afetam diretamente a absorção de nutrientes), nas mudanças químicas associadas ao
ultraprocessamento dos alimentos (particularmente pelo uso de um conjunto de aditivos alimentares cosméticos e pela introdução de contaminantes neoformados nos produtos), bem como seus impactos sobre a forma de consumo, incluindo os efeitos sobre a comensalidade, o consumo excessivo e compulsivo e outros impactos inclusive sobre a saúde mental (Juul, Vaidean e Parekh, 2021).

No campo da produção acadêmica avançaram significativamente as metodologias de modelagem para avaliação dos impactos epidemiológicos, ambientais e econômicos dos sistemas agroalimentares (particularmente em relação a ambientes alimentares) e das políticas públicas de promoção da alimentação adequada e saudável, ampliando a abordagem focada nos nutrientes para os padrões alimentares baseados no grau e propósito do processamento industrial dos alimentos (Willett et al., 2019)(Leite et al., 2022)(Nilson et al., 2022)(T Da Silva etal., 2021).

Por exemplo, no Brasil o consumo de produtos ultraprocessados no Brasil está associado a 57 mil mortes anuais, que custam um total de R$9,2 bilhões de reais à economia. Além disso, é estimado que os custos para o Sistema Único de Saúde do tratamento de DCNTs atribuíveis à obesidade na população adulta chegaram a R$1,4 bilhão por ano em 2019 (Nilson et al., 2020) e, considerando as tendências futuras de crescimento do excesso de peso e obesidade no país, os custos ao SUS dos novos casos de DCNTs podem alcançar R$4,2 bilhões de 2020 a 2030, além de perdas de produtividade por mortalidade precoce poderem chegar a R$45 bilhões no mesmo período (Giannichi et al., 2022). Consideradas as perdas econômicas associadas a todos os custos indiretos da obesidade no Brasil, incluindo absenteísmo, presenteísmo e mortes prematuras, estes podem somar até 8,7% do PIB (Rasmussen, 2015).

3. Como novidade, o relatório de 2024 adota uma tipologia de sistemas agroalimentares com seis categorias – crise prolongada, tradicional, em expansão, em diversificação, em formalização e industrial. Com base nessa tipologia, analisa os custos ocultos
quantificados para 153 países, abrangendo 99% da população mundial. Sistemas agroalimentares industriais e em diversificação respondem pelos maiores custos ocultos globais quantificados (totalizando 5,9 trilhões de dólares em PPP de 2020), em que se destacam os custos ocultos relacionados à saúde.

Vale a pena nos determos rapidamente nessa tipologia, pois, além de ser um tema novo, ajuda a explicar a abordagem dos países para além de características de região e rendimentos. Devido à complexidade dos sistemas agroalimentares, ao longo do tempo foram feitas diversas tentativas de criar uma tipologia desses sistemas para categorizar os países com base em características econômicas, políticas, institucionais e geográficas comuns relacionadas aos sistemas alimentares. Mais recentemente, a ampliação do pensamento sistêmico para incluir os componentes mais amplos dos sistemas agroalimentares – desde a produção primária (incluindo outros sistemas de apoio) até o processamento, embalagem, consumo e descarte – aumentou a complexidade dimensional e, com isso, a necessidade de uma tipologia para estruturar o discurso em torno dos impactos de possíveis instrumentos de políticas públicas.

Nesse contexto, as tipologias traduzem as dimensões de sistemas complexos em um conjunto de características de fácil compreensão e facilitam a identificação de pontos em comum e distinções entre grupos. Como toda classificação, é possível que ainda possam ocultar
heterogeneidades relevantes dentro dos grupos, mas olhares mais ampliados são particularmente para análises específicas de contexto e desenho de soluções mais adaptadas a cada uma.

Diante disso, no relatório de 2024 foi aplicada uma tipologia relacionada especificamente aos sistemas agroalimentares, com as seguintes categorias: crise prolongada, tradicional, em expansão, em diversificação, em formalização e industrial (em inglês: protracted
crisis, traditional, expanding, diversifying, formalizing and industrial) (Marshall et al., 2021). Dentre algumas das variáveis para essa classificação, temos o grau de urbanização, o valor adicionado por trabalhador na agricultura, a porcentagem de calorias que não vêm de alimentos básicos e o número de supermercados por 100.000 habitantes. Essa tipologia tem razoável sobreposição com diferentes regiões do globo, mas permitem ir além disso, considerando similaridades na estrutura e funcionamento dos sistemas alimentares entre diferentes países
(Figura 1).

Figura 1. Mapa global segundo as tipologias de sistemas alimentares (SOFA/FAO 2024)

4. Em relação às possíveis respostas aos desafios atuais, o relatório aponta que não existe uma única estratégia de transformação dos sistemas agroalimentares, dado o leque de possíveis intervenções políticas e investimentos. Na transição histórica de sistema agroalimentares tradicionais para industriais, tanto os resultados quanto os custos ocultos variam. Assim, embora haja espaço para melhorar a eficiência e a segurança, o relatório aponta que é essencial evitar a ampliação de desequilíbrios de poder, custos ocultos ambientais e sociais, e transições alimentares prejudiciais à saúde.

Como observado em outros documentos da FAO, apesar do chamamento à transformação dos sistemas agroalimentares, pouca menção é feita aos próprios sistemas agroalimentares hegemônicos, em que se associam monoculturas de commodities com  produtos ultraprocessados e que estão no centro de crises como a sindemia global de desnutrição, obesidade e mudanças climáticas (Swinburn et al., 2019), junto com a epidemia de DCNTs, da perda de biodiversidade e da continuidade da pobreza e do aumento das desigualdades. Esse reconhecimento mais explícito seria muito benéfico para evitar soluções paliativas e os diferentes tipos de limpeza de imagem corporativa (green, blue e social washing, em particular) que podem vir com falsas soluções que desviam o foco das transformações mais
necessárias.

5. Os custos ocultos ambientais são maiores em sistemas agroalimentares em diversificação (720 bilhões de dólares em PPP de 2020), seguidos pelos sistemas em formalização e industriais. No entanto, os países em crise prolongada enfrentam a maior carga de custos
ocultos ambientais em relação ao seu produto interno bruto (PIB) (20%).

6. Custos ocultos sociais são predominantes em sistemas agroalimentares tradicionais e em crise prolongada, representando 8% e 18% do PIB, respectivamente. Esses custos – impulsionados pela subnutrição e pela pobreza – destacam a importância de melhorar os meios
de subsistência e fortalecer o nexo entre humanitário, desenvolvimento e paz.

7. Custos ocultos de saúde são relevantes em todas as categorias de sistemas agroalimentares. O principal risco alimentar relacionado a doenças crônicas não transmissíveis é o baixo consumo de grãos integrais em todos os sistemas agroalimentares, exceto em crise
prolongada e tradicional, onde o maior risco é a baixa ingestão de frutas e vegetais.

Considerando os itens 5, 6 e 7, a composição dos custos segundo as tipologias mostra muito claramente que os custos dos sistemas alimentares à saúde são maiores em todos os grupos, exceto o de crise prolongada, onde os custos ambientais e sociais são ainda maiores
proporcionalmente. Além disso, os custos sociais são particularmente maiores nas categorias em que predominam os países de menores rendimentos e sistemas alimentares menos globalizados, enquanto o impacto ambiental dos sistemas alimentares é considerável em todas
as tipologias (Figura 2).

Figura 2. Estimativa de custos ocultos segundo categoria de sistemas agroalimentares
(SOFA/FAO, 2024)

8. Em países e territórios com sistemas agroalimentares em formalização e industriais, dietas ricas em carne vermelha e processada, bem como em sódio, são significativas. Diretrizes ou guias alimentares baseados em alimentos precisam considerar esses padrões para promover de forma mais eficaz dietas saudáveis que reduzam os custos ocultos de saúde. A exemplo da argumentação trazida no comentário sobre o item 2, o uso da classificação NOVA de alimentos, considerando a participação dos ultraprocessados nas dietas, traria maior clareza a essa análise. A transição entre as tipologias traduziria muito fielmente o aumento do consumo de ultraprocessados nas populações, substituindo os alimentos frescos e minimamente processados de origem local por dietas globalizadas.

Além disso, remetendo a nosso último informe (20/2024), para além dos guias alimentares baseados em alimentos, que focam nos padrões alimentares no lugar dos nutrientes somente, a perspectiva mais abrangente de sistemas alimentares nesses guias dietéticos traria
benefícios ainda maiores em relação aos hábitos alimentares junto com as formas de produção, processamento, distribuição, consumo e descarte dos alimentos, ampliando o poder de indução de políticas (Food and Agriculture Organization (FAO), 2024b).

9. Transformar os sistemas agroalimentares para reduzir os custos ocultos melhorará o bem-estar. No entanto, a distribuição dos benefícios e custos será desigual entre diferentes partes interessadas, países e períodos.

Diferentes contextos demandam diferentes abordagens e estratégias importadas de contextos distintos podem ter impacto limitado. Por isso, abordagens mais tradicionais do norte global em relação ao sul global, por exemplo, são comumente pouco transformadoras e
estruturantes, enquanto soluções mais contextualizadas, como as mais trabalhadas na cooperação sul-sul, mostram-se mais efetivas.

Mesmo dentro de um mesmo país, é fundamental considerar os impactos das políticas sobre diferentes grupos populacionais, tendo em vista que grupos como populações indígenas, comunidades tradicionais e outros são mais impactados pelos sistemas agroalimentares
hegemônicos e precisam ser priorizados. Ao mesmo tempo, esses mesmos grupos também aportam muitos conhecimentos tradicionais que podem e devem se somar às evidências da ciência tradicional para a construção de alternativas transformadoras de sistemas alimentares saudáveis, sustentáveis, resilientes e inclusivos, além de socialmente justos.

10. Todos têm um papel a desempenhar na transformação dos sistemas agroalimentares. É crucial integrar os esforços realizados nos sistemas agroalimentares – como aqueles feitos pelos setores público e privado, instituições de pesquisa e sociedade civil.
Esse ponto é mais detalhado no corpo do relatório, mas repete o risco de muitos outros documentos de colocar em protagonismo muitos agentes dos sistemas hegemônicos, cujos interesses são financeiros, lucrando com esses sistemas e não arcando com seus custos e, ao
mesmo tempo, influenciando políticas nacionais e globais para evitar os modelos verdadeiramente transformadores de sistemas alimentares.

Esse tipo de conflito de interesse precisa ser considerado para que a estrutura de governança das políticas e iniciativas não corra risco de ser capturado pelas grandes corporações de setores como agronegócio, ultraprocessados, mercados financeiros e do setor de tecnologia
da informação (Big Agro, Big Food, Big Money e Big Tech). Enquanto isso, deve ser preservado e garantido o espaço de participação de representantes da sociedade civil e seus grupos, assim como da academia (sem conflitos de interesses) para garantir que soluções sejam baseadas em direitos, considerem aspectos de equidade e interseccionalidades e sejam baseadas em evidências.

11. Em cadeias de suprimento alimentar cada vez mais globais, os desequilíbrios de poder frequentemente transferem o ônus das mudanças para partes vulneráveis, como os produtores, que acabam enfrentando custos regulatórios mais altos e pressões de redução de
preços. Em contraste, os benefícios das mudanças podem ser colhidos por partes que evitam ou repassam os custos adicionais. É possível minimizar a interrupção dos negócios ao antecipar mudanças regulatórias esperadas e adotar práticas sustentáveis e justas desde o início.
Esse item é muito importante em relação a muitos aspectos de saúde e ambientais associados aos sistemas alimentares globalizados, visto que frequentemente países mais vulneráveis às mudanças climáticas, por exemplo, são justamente impactados pelas práticas de
outros locais do mundo. Da mesma maneira, na esteira de modelos neocoloniais de relações com nações ricas, se replicam modelos de aumento da pobreza e das desigualdades. Portanto, princípios como poluidor pagador, resgate histórico de exploração, perdão de dívidas, apoio ao desenvolvimento local e outros mecanismos serão fundamentais e devem ser financiados pelos países do modelo industrial em relação aos demais.

12. Os consumidores podem influenciar os sistemas agroalimentares por meio de suas decisões de compra, escolhendo produtos que sejam produzidos de forma sustentável e saudável. Incentivos financeiros, programas de informação e educação, além de
regulamentações, podem apoiar essa mudança, garantindo que até mesmo as famílias vulneráveis possam participar e se beneficiar dessas transformações. De fato, a participação dos consumidores é central em transformações, mas não se pode dar um peso desproporcional e isolado à educação e comunicação em detrimento de transformações nos ambientes alimentares em que eles vivem e fazem suas escolhas. Os ambientes alimentares determinam a disponibilidade, a publicidade e a acessibilidade física e financeira aos alimentos e determinam fortemente o que é consumido, portanto escolhas saudáveis e ambientalmente coerentes só podem se dar quando a informação e educação
podem ser aplicadas.

Esse cuidado é fundamental pois constantemente existe uma tentativa de captura dessa narrativa por parte do setor produtivo, como as indústrias de alimentos, colocando toda a responsabilidade pelas consequências à saúde relacionadas à alimentação inadequada em suas
escolhas, ignorando o contexto na qual ocorrem. Por isso, políticas regulatórias e fiscais são fundamentais para atuar sobre os ambientes alimentares, tornando escolhas alimentares mais saudáveis as mais fáceis e acessíveis e desincentivando as escolhas não saudáveis, como por meio da tributação de produtos nocivos à saúde, aprimoramento da rotulagem e regulação da venda e da publicidade.

13. O significativo poder de compra das instituições pode ser aproveitado para remodelar as cadeias de suprimento alimentar e melhorar os ambientes alimentares. Ao incentivar o consumo de alimentos sustentáveis e nutritivos, essas instituições podem influenciar
os padrões de consumo por gerações. Esse impacto pode ser ainda maior quando combinado com uma educação abrangente sobre alimentação e nutrição.

Nesse ponto, a articulação entre políticas governamentais, desde o fomento à produção até as compras públicas, mostra-se um poderoso instrumento de transformação dos sistemas alimentares locais. No Brasil, o Programa Nacional de Alimentação Escolar é um exemplo
frequentemente mencionado, considerando o percentual mínimo de compras de produtos da agricultura familiar, mas atualmente as compras públicas têm também se vinculado a outros equipamentos sociais e o fomento à produção local trouxe maior reforço à produção orgânica e agroecológica.

Contudo, no contexto mais ampliado, é preciso trazer uma profunda reorientação de subsídios governamentais para modelos de produção sustentáveis, resilientes e inclusivos em detrimento da priorização atual dos modelos hegemônicos, concentradores e excludentes,
pode, junto com a tributação de produtos nocivos à saúde humana e planetária, podem reverter a produção mais biodiversa para priorizar os alimentos in natura e minimamente processados.

No Brasil, o momento atual de discussão da reforma tributária é muito propício para agregar à tributação seletiva já prevista do tabaco, a das bebidas alcóolicas, dos produtos ultraprocessados e dos agrotóxicos, enquanto se deve estimular (inclusive por meio de
subsídios) uma cesta básica alinhada com o Guia Alimentar para a População Brasileira.

14. Avaliações de TCA direcionadas aos sistemas agroalimentares, realizadas em diferentes níveis – desde produtos e cadeias de valor até o nível nacional – podem ajudar os tomadores de decisão públicos e privados a estabelecer prioridades e gerenciar compensações.

Um engajamento consultivo robusto com as partes interessadas dos sistemas agroalimentares identifica ações eficazes e justas.

Nesse sentido, o papel da FAO é particularmente importante, ao poder garantir acesso a dados públicos e aplicar metodologias comuns para diferentes contextos, apoiando os países em suas abordagens específicas. Ao mesmo tempo, o uso das informações nacionais, mesmo
que agregadas ou possivelmente irregulares ao longo do tempo, estimula o aprimoramento dessas informações, tanto em termos de regularidade e qualidade quanto de aplicabilidade, num ciclo virtuoso.

Conclusão
Nas palavras da diretora de sistemas alimentares da FAO, Corinna Hawkes, novo relatório apresenta três pontos básicos e irrefutáveis: primeiro, os sistemas agroalimentares globais geram inúmeros benefícios para todos; segundo, eles também geram inúmeros custos,
que somam em torno de US$ 12 trilhões por ano, dos quais 70% vêm de padrões alimentares não saudáveis; e, em terceiro lugar, revela-se uma enorme desconexão entre os ‘criadores de custos’ e os ‘portadores de custos’ (aqueles que pagam pelos custos). Nesse sistema, os atores que geram os custos geralmente se beneficiam do status quo, enquanto os que pagam os maiores custos, definitivamente, não. Pior, quem paga pelos custos dos sistemas  agroalimentares pode estar um país diferente ou mesmo podem nem ter nascido ainda.
Segundo ela, essa profunda desigualdade levanta uma questão crucial: como transferir recursos dos beneficiários atuais dos custos ocultos para aqueles que arcam com os custos.

Isso remete a todo o conjunto de políticas agrícolas, de segurança alimentar e nutricional e de saúde, pensando em uma abordagem de sistemas alimentares para enfrentar os problemas dos sistemas hegemônicos, mas que, paradoxalmente, está baseado no
financiamento predominante dos sistemas predatórios em detrimento dos sistemas transformadores. Por exemplo, países subsidiam e financiam pesadamente as culturas de commodities agrícolas, enquanto o financiamento dos agricultores familiares, e mais
particularmente dos que praticam modelos agroecológicos de produção, é substancialmente menor.

A contradição maior vem justamente do fato que grande parte da produção de commodities gera esses grandes custos dos sistemas agroalimentares apontados pelo relatório, ou seja, os próprios recursos públicos financiam pesadamente a produção de ingredientes para
os produtos ultraprocessados que estão associados a grande parte das DCNTs associadas à alimentação, além de seus impactos ambientais considerando desmatamento, queimadas, esgotamento dos solos, uso intensivo de recursos naturais e poluição ambiental por agrotóxicos,
combustíveis fósseis e plásticos.

No momento atual, destacam-se os esforços da presidência brasileira do G20 (como na Aliança Global Contra a Fome), em que a fome é tratada numa perspectiva ampliada, incluindo os sistemas alimentares e a sindemia global de desnutrição, obesidade e mudanças climáticas, a partir dos quais compromissos mais efetivos possam ser assumidos e implementados pelos países, incluindo os potenciais financiadores e implementadores. Aliás, um componente inovador e essencial trazido pelo Brasil, do G20 Social deve ser replicado em novas presidências para buscar equilibrar a estrutura de governança e legitimar os compromissos diante das populações, trazendo instrumento de escuta, monitoramento e cobrança.

Ao mesmo tempo, durante a COP 26 no Azerbaijão, espera-se reforçar o olhar sobre o papel dos sistemas agroalimentares na agenda e nos compromissos ambientais, mas com especial atenção aos potenciais conflitos de interesses e problemas de governança que se
apresentam em outros momentos dessas agendas. Nesse contexto, os custos dos sistemas agroalimentares podem ser uma ferramenta
poderosa para defender as mudanças necessárias nos sistemas agroalimentares globais, como sempre, colocando as transformações como elementos fundamentais para garantir a saúde humana e planetária, sem deixar ninguém para trás.

 

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