Quando a psicologia encontra a nutrição: um relato de experiência sobre o brincar como instrumento terapêutico no cuidado da obesidade infantil

Claudia Carneiro da Cunha
Nelson Roig

“O sonho é o olho da vida”
Mia Couto



I. Um problema e uma proposta interdisciplinar

A obesidade é um grave problema de saúde pública, principalmente devido à tendência global do seu aumento. Mundialmente, estima-se que 170 milhões de crianças estejam acima do peso (WHO, 2012). 

No contexto brasileiro, de acordo com os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) em 2008, o excesso de peso atingia 33,5% das crianças de 5 a 9 anos (BRASIL, 2011).

Neste sentido, as consequências psicossociais da obesidade infanto-juvenil são bastante preocupantes: a) questões com a autoimagem e no relacionamento social, devido ao padrão físico e estético em confronto com socialmente desejável; b) exclusão da criança ou adolescente na participação de atividades em grupos, como em brincadeiras que exigem agilidade, fôlego e rapidez, acentuando o sedentarismo; c) reforço da comida como um refúgio e uma forma de obtenção de prazer, acarretando ainda mais o excesso de peso.

Diante desses desafios de ordem psicossocial, manifestamos uma preocupação por não reproduzir no Projeto uma lógica normativa e verticalizada, ainda comum na Educação em Saúde. 


II. Um Encontro

O Projeto “1, 2, feijão com arroz: tecendo práticas da nutrição e psicologia na alimentação infanto-juvenil” foi criado em meados do ano de 2016, no contexto da estruturação da linha de cuidado para excesso de peso em área programática da cidade do Rio de Janeiro. Tratou-se de uma das ações do PET-GraduaSUS¹ que articulou, de maio de 2016 a abril de 2018, a formação e assistência para o tratamento de crianças e adolescentes com obesidade, atendidos em um ambulatório de pediatria da Policlínica Piquet Carneiro (PPC), serviço de atenção secundária da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Havia uma demanda por parte do serviço de nutrição para que fosse realizado um trabalho da psicologia voltado à obesidade infantil. Os questionamentos iniciais eram variados: o que é o trabalho da psicologia integrado ao da nutrição? Como é um trabalho na atenção secundária voltado a esse tema e de caráter interdisciplinar? O que há de específico na dinâmica do serviço e do trabalho da PPC voltado à obesidade infantil?

Da parte da psicologia, o Brincar como instrumento terapêutico (Santa-Rosa, 1993) emergiu como um “solo seguro” para o início da conversa com a equipe da nutrição. A partir daí, foram realizados inúmeros debates acerca do formato do trabalho. 

O objetivo geral do Projeto foi promover uma prática interdisciplinar entre a psicologia e a nutrição, com vistas a qualificar o cuidado em saúde da obesidade de crianças, adolescentes e adultos (responsáveis).

Um solo comum às duas áreas foi o princípio da Integralidade do SUS (Ayres, 2004), considerando-se o usuário como um indivíduo socialmente situado, respeitando-se sua visão de mundo no processo saúde-doença.

Discutimos ao longo de dois meses assuntos importantes quando se pensa a Educação em Saúde (Valla & Stoz, 1993), incluindo a Educação Alimentar e Nutricional. Por exemplo, o fato de que a comida/alimentação ser uma expressão cultural.

Debatemos também acerca das novas configurações de família na contemporaneidade (Barros, 2006) e dos seus reflexos na educação das crianças. E refletimos sobre o lugar das tecnologias (jogos e vídeos) no entretenimento das crianças na atualidade, relacionando-os ao retraimento do brincar na rua e em espaços públicos, em razão da violência urbana.

Por fim, abordamos a questão da alimentação como expressão de “um modo de funcionar da família”. Citando casos nos quais o adulto dá comida para a criança por “pena”, “culpa”, ou para reparar algo da ordem emocional.


III. O brincar como instrumento terapêutico

Iniciamos um projeto piloto, de setembro a dezembro de 2017, estruturando o trabalho a partir de dois grupos de atendimento psicológico e nutricional − um de responsáveis e outro de crianças e adolescentes.  Os encontros aconteceram de 15 em 15 dias (alguns encontros conjuntos), alternados com atividades da equipe para planejamento e estudo.

Planejamos 6 encontros e criamos uma intencionalidade a cada encontro. Para tanto, nos inspiramos na metodologia do Instituto de Arte TEAR², já que a Arte amplia as sensibilidades, os campos simbólicos e imaginários, desenvolvendo os processos cognitivos e a capacidade crítica. 

Os encontros foram estruturados em 4 módulos lúdicos e arte-educativos: 1) relações familiares e o lugar da criança; 2) corpo e imagem corporal; 3) olfato, paladar e alimentação; 4) dinâmicas familiares e rotinas alimentares.

Os responsáveis gostaram de ter um espaço de escuta e reconheceram questões transgeracionais na criação e alimentação dos seus filhos. O Brincar permitiu: o despertar da consciência corporal; a elaboração de questões emocionais; a horizontalização das relações profissional-usuário e o estreitamento de vínculos entre as crianças e seus responsáveis.


1. O PET-GraduaSUS é um programa que se destina a potencializar a integração ensino-serviço-comunidade no SUS, por meio de atividades que envolvam o ensino, a pesquisa, a extensão universitária e a participação social.
2. Para mais informações ver http://institutotear.org.br/.


Referências Bibliográficas:

AYRES, José Ricardo de Carvalho Mesquita. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude soc. [online]. 2004, vol.13, n.3, pp.16-29.
BRASIL. Pesquisa de orçamentos familiares (POF) 2008-2009: Análise do consumo alimentar pessoal no Brasil / IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento – Rio de Janeiro: IBGE, 2011. 150 p.
BARROS, Myriam Lins de. (org.) Família e Gerações. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. Santa-Rosa, E. (1993). Quando brincar é dizer. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
VALLA, V. V. E STOTZ, E. N. (org). Participação popular, Educação e Saúde: Teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.
WHO – WORLD HEALTH ORGANIZATION Library. Prioritizing areas for action in the field of population-based prevention of childhood obesity: a set of tools for Member States to determine and identify priority areas for action. Geneva: WHO, 2012.


Autores:

Claudia Carneiro da Cunha
Atualmente professora do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a autora iniciou seus estudos sobre o Brincar como instrumento terapêutico, no ano de 1999, no contexto de um hospital do Ministério da Saúde de referência no cuidado materno-infantil. Seu campo de pesquisa desde então se centra nas áreas da infância, adolescência e juventude, com análises que vão desde a adesão ao tratamento de doenças crônicas, até a organização de movimentos sociais.

Nelson Nilton Roig Alves
Atualmente Nutricionista Clínico na Policlínica Piquet Carneiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Professor do Curso de Graduação em Nutrição da Universidade do Grande Rio, o autor trabalha com Nutrição em Pediatria desde 2009, sempre em atividades ligadas aos usuários do Sistema Único de Saúde. Seu campo de interesse, atuação e pesquisa desde então sempre está relacionado com a nutrição clínica e materno-infantil associada doenças crônicas com foco na obesidade.