Habilidades Culinárias: uma ferramenta para a construção da alimentação saudável desde a infância
No dia 13 de novembro, o Ministério da Saúde anunciou a publicação do novo Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 anos. A nova versão do Guia tem uma linguagem voltada para as famílias e reforça a recomendação da amamentação exclusiva até os seis meses e a continuidade do aleitamento materno até os dois anos ou mais. A publicação orienta que a alimentação seja cada vez mais natural e preparada em casa, sendo um de seus capítulos intitulado “Cozinhar em Casa”. As recomendações evidenciam a chegada da criança ao lar como uma grande oportunidade para que a alimentação saudável se torne parte da vida de toda a família.
O lançamento do novo Guia chega no momento em que o Brasil atravessa uma onda alarmante de sobrepeso e obesidade com consequente aumento de Doenças Crônicas Não Transmissíveis. É imperativo reafirmar que a obesidade aumenta o risco de problemas cardiovasculares, doenças como o Diabetes e alguns tipos de cânceres. Dados do Ministério da Saúde revelam que 4,4 milhões de crianças estão acima do peso no Brasil.
Em consonância com o tema, o Observatório Brasileiros de Hábitos Alimentares – OBHA, com o propósito de contribuir para reflexões acerca de hábitos alimentares, em conversa com Mariana Fernandes conduziu uma entrevista sobre habilidades culinárias e suas correlações com a alimentação saudável em menores de dois anos. Mariana Fernandes B. de Oliveira é nutricionista e mestre pela UFRJ, com aperfeiçoamento em Gastronomia pela UNIRIO/RJ e doutorado pela UERJ. Atualmente trabalha em projetos de pesquisa e extensão nas áreas de alimentação coletiva, culinária e sua interface com a saúde coletiva. Trabalhou também como cozinheira em Portugal. Tem uma encantadora filha de três anos chamada Mel.
OBHA: O que são habilidades culinárias, o que é o cozinhar e como se relacionam?
Mariana Fernandes B. de Oliveira: As habilidades culinárias são competências necessárias para cozinhar; por sua vez, cozinhar consiste em preparar refeições utilizando fundamentalmente alimentos in natura como legumes, verduras e frutas, minimamente processados como cereais, leguminosas, ovos e carnes, e ingredientes culinários, como óleo, sal e açúcar. Em relação à preparação de refeições que utilizam majoritariamente alimentos ultraprocessados, a literatura não é unânime quanto ao uso da palavra “cozinhar”. Neste sentido, cozinhar seria começar o preparo a partir de alimentos frescos e crus, ou seja, se envolver em todas as etapas e não somente finalizar a preparação, como aquecer uma refeição que fora comprada já pronta e/ou congelada. O ato de cozinhar também consiste em muito mais que somente misturar alimentos na panela. Antes mesmo de picar, descascar, refogar ou ferver, é necessário que primeiramente haja alimentos em casa. Portanto, planejar a compra, comprar e organizar os alimentos, criar um cardápio ou conjunto de preparações que irão compor uma refeição, organizar mentalmente a sequência das atividades a serem realizadas na execução deste cardápio, provar as preparações antes de serem servidas, sentir o aroma que exalam, tocar nos alimentos, conferir cor e aparência, lavar louças e utensílios utilizados, limpar e organizar a cozinha após a refeição, igualmente compõe o cozinhar e devem ser considerados ao pensar a culinária doméstica.
OBHA: Qual a importância das habilidades culinárias para promoção da saúde?
Mariana Fernandes B. de Oliveira: A crescente incidência de doenças associadas à dieta é observada junto com o aumento no consumo de alimentos ultraprocessados, que pouco demandam intervenção culinária por parte de quem os consomem. Em concordância, alguns autores já apontam a relação de habilidades culinárias e melhor qualidade da dieta. Ou seja, a culinária pode ser um elemento que viabiliza o consumo de alimentos de melhor qualidade nutricional, portanto, fator de grande relevância para a saúde coletiva. O preparo de refeições no âmbito doméstico é especialmente importante para crianças menores de dois anos. O capítulo “Cozinhar em casa” traz orientações para preparar diferentes tipos de alimentos para as crianças, considerando a agilidade no preparo e também a preservação dos nutrientes desses alimentos.
OBHA: O ato de cozinhar pode sobrecarregar a vida do cuidador de uma criança?
Mariana Fernandes B. de Oliveira: Caso todas as atividades que envolvem o cuidado da criança e o cozinhar estiverem centradas em uma só pessoa, possivelmente sobrecarregue a vida do cuidador sim. Logo, o debate de equidade de gênero se aproxima ao da promoção da alimentação saudável na esfera privada (casa). Homens e mulheres devem se envolver no cozinhar a fim de que ele seja possível no dia a dia. Compartilhar tarefas domésticas, inclusive as atividades culinárias, deve ser um ponto constantemente enfatizado nas atividades de promoção da saúde. É histórico o costume de desconsiderar o trabalho doméstico como um trabalho de fato, por não ser remunerado como o trabalho produtivo, realizado fora de casa, ainda que o primeiro seja mais cansativo em muitos casos. Assim, antes mesmo de falarmos sobre habilidades culinárias e seu impacto na saúde das crianças, precisamos considerar o impacto das atividades culinárias na vida de seus cuidadores. Sobrecarregar aquele que cuida da criança, não é uma forma de garantir a sua saúde, assim como ofertar alimentos industrializados, é menos ainda. Neste sentido, o novo Guia traz a seguinte orientação como sendo um dos 12 passos para uma alimentação saudável: “Cozinhar a mesma comida para a criança e para a família”. Esta é uma importante mensagem de apoio às famílias, ainda não dada tão claramente em documentos oficiais deste gênero no Brasil e no mundo. Não recomendar a preparação em separado para a criança, é facilitar todo o processo e fazer da chegada dela um evento que “cabe” no dia a dia da família que cozinha com alimentos in natura e minimamente processados, sem excesso de sal, açúcar e condimentos. Também o capítulo “Cozinhar em casa” traz orientações para um “cozinhar estratégico”, como incentivar o uso da panela de pressão para o cozimento de outros alimentos além dos feijões; pré-preparar alimentos que podem ser armazenados na geladeira e facilitam a prática da culinária diária; e elaborar pratos únicos feitos em uma só panela para a criança e para a família, a fim de gerar menos louça e gastar menos gás, por exemplo.
OBHA: No mundo de hoje, onde tempo é dinheiro, as habilidades culinárias já desenvolvidas são capazes de otimizar o tempo de preparação das refeições?
Mariana Fernandes B. de Oliveira: Assim como qualquer habilidade, quanto mais praticada, melhor o desempenho desta. No entanto, cabe ressaltar, que a comida tem seu tempo. Cozinhar é uma atividade que não depende somente da agilidade de quem cozinha, mas do tempo de cozimento, por exemplo, que o feijão precisa, que é diferente do tempo da batata. Logo, pode-se treinar para tornar-se mais rápido, mas ainda assim cozinhar demanda tempo. É preciso reservar um tempo para se planejar, preparar alimentos com antecedência e cozinhar em meio às atividades do nosso dia a dia, assim como deve haver ações políticas que apoiem o tempo disponível para o cuidado da família, inclusive o cozinhar. Melhorias no transporte público e estabelecimento de jornadas de trabalho que viabilizem os cuidados em saúde, são de responsabilidade do Estado e não podem ser alteradas diretamente pelo indivíduo, mas possuem forte influência nas práticas culinárias diárias. O conceito de Autonomia Culinária aproxima elementos de universos diferentes, mas que juntos impactam nas decisões sobre o cozinhar. Ou seja, ter feijão já cozido na geladeira e gastar menos tempo no deslocamento do trabalho para casa, são elementos da esfera do tempo que facilitam e até possibilitam a prática culinária no dia a dia, mas que possuem características completamente distintas em relação a capacidade de influência do indivíduo em questão. Essa abordagem ajuda para que não culpabilizemos a mãe, o pai ou o cuidador que moram nas periferias, que trabalham 9 horas por dia, gastam outras muitas horas para ir e voltar e têm dificuldade em produzir comida saudável em casa para a criança. No entanto, reconhecer a complexidade do cozinhar diário não reduz o fato de que preparar refeições caseiras é um investimento na saúde da criança que está conhecendo o mundo dos sabores, dos alimentos e do prazer de comer. Como profissionais de saúde, podemos orientar sobre atitudes estratégicas na cozinha afim de reduzir o tempo de preparo, porém, sem desconsiderar que a garantia de direitos individuais e melhoria da qualidade de vida influenciam igualmente este cozinhar.
OBHA: O incentivo à culinária doméstica como viabilizadora de alimentação saudável é um instrumento que pode mudar o cenário alimentar atual do Brasil?
Mariana Fernandes B. Oliveira: A promoção do cozinhar em casa com foco exclusivamente nas práticas e escolhas saudáveis, sem considerar elementos estruturantes como educação, saúde, acesso a emprego e renda, bem como as robustas desigualdades que assolam a população brasileira, faz com que avancemos em ritmo lento. Porém, há pressa quanto as conquistas a serem realizadas neste tema. Trocar receitas com familiares, conversar sobre culinária, estabelecer uma rede de apoio para amamentar e também para cozinhar para a criança, buscar conhecimento e colocar a mão na massa são caminhos para conquistar a nutrição saudável na infância para aqueles que possuem educação, saúde, acesso a alimentos e cozinha com infraestrutura básica. Aos mais desassistidos, é preciso avançar em diversas políticas públicas para que consigamos garantir, como consequência, a prática culinária e o direito à alimentação adequada e saudável de toda a família.
Para aprofundamento sobre o tema sugere-se as seguintes referências:
BRASIL. Ministério
da Saúde. Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de
Dois Anos. Brasília: Ministério da Saúde, 2019.
BRASIL. Ministério da Saúde. Guia Alimentar para a População Brasileira. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. SHORT, F. Domestic cooking skills – what are they? Journal of the Home Economics Institute of Australia, v. 10, n. 3, p. 13–22, 2003 OLIVEIRA, M.F.B.; CASTRO, I.R.R. Autonomia Culinária: construção de um novo conceito em alimentação e nutrição em saúde coletiva. Anais do XXV Congresso Brasileiro de Nutrição (CONBRAN) – Saúde Coletiva, 2018. HARTMANN, C.; DOHLE, S.; SIEGRIST, M. Importance of cooking skills for balanced food choices. Appetite, v. 65, p. 125–131, 2013. |
MILLS,
S. et al. Health and social determinants and outcomes of home
cooking: A systematic review of observational studies. Appetite,
v. 111, p. 116–134, 2016.
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MONTEIRO,
C.A. et al. Ultra-processed
products are becoming dominant in the global food system. Obesity
reviews, suppl. 2, p. 21-28, 2013.
FAO, High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition – Extract from the Report 1 –Nutrition and food systems, 2017 |